À primeira vista, As Aventuras de Tom Jones, vencedor do Oscar de melhor filme em 1964, parece mais um filme de época convencional: a direção de arte e os figurinos são impecáveis, reproduzindo a Inglaterra e os costumes do século 18 com perfeição; o roteiro acrescenta as intrigas e traições envolvendo, dentre outras coisas, a herança alheia e o coração de uma dama, sempre com um toque de humor tipicamente britânico; e só mesmo a fotografia deixa a desejar, incapaz de capturar certas nuances perdidas no quadro frio e escurecido. A mistura, porém, ganha um ingrediente original na direção de Tony Richardson, que também venceu o Oscar, com uma inusitada maneira de subverter convenções de um gênero que já implorava por uma repaginada.
Filmando o prólogo como se estivesse comandando um filme mudo, ou seja, em 16 quadros por segundo e usando os intertítulos, Richardson cria a antítese perfeita no instante anterior ao batismo de Tom Jones, bebê abandonado pela empregada Jenny (Joyce Redman) na cama do compassivo juiz Squire (George Devine), já que em seguida, a narrativa não abandona a plena histeria de um protagonista insaciável. Bastardo, embora não pudesse se importar menos com este status social, a única coisa que Tom Jones (Albert Finney) deseja é colecionar o maior número de amantes e aventuras e, de quebra, o coração de Sophie Western (Susannah York), recém chegada de uma temporada de 2 anos em Londres e filha do proprietário vizinho, o beberrão oportunista interpretado por Hugh Griffith.
Mas existem obstáculos no caminho de Tom: os tutores que foram incapazes de conferir-lhe senso de virtude e religião (ou melhor dizendo, que não o manipulavam), e Blifil (David Warner), sobrinho de Squire e herdeiro legítimo da propriedade. Eventualmente, uma acusação do trio fundamentada na obscenidade e falta de bons costumes provoca o exílio de Tom da sua vida de regalias, instante em que a narrativa sofre uma mudança radical virando uma espécie de road movie de época. As características mais marcantes como o anarquismo e a falta de rigor, que antes conferiam jovialidade ao filme, agora mostram-se incapazes de sustentar a metade restante, preocupada em explorar o humor pastelão e clichês resgatados do fundo do baú.
Não demora para que Sophie tenha seu casamento arranjado com Blifil, que ela rejeita, e ensaie uma fuga para pavor do seu pai e de uma tia rigorosa. Ou então que o roteiro ache uma forma de reintroduzir dois personagens do prólogo convenientemente durante o exílio de Tom, sendo que um deles é dono de um segredo do passado – óbvio que a carta recebida e não lida em público retornará no momento apropriado como deus ex machina. Ao mesmo tempo, enquanto é reconfortante observar o relaxamento de Finney e York que não temem em fazer bobos de si mesmos, tropeçando de pernas pra cima e caindo de uma árvore dentro do rio para comoção dos observadores, o desenvolvimento dos personagens é comprometido quando os seus conflitos são reduzidos a um monte de coincidências e risos descompromissados.
Não me entenda mal, porém, pois como comédia de costumes irônica e inconvencional, a narrativa saí-se muito bem (mas jamais entenderei a sua premiação). Durante um jantar daqueles ditos nobres, beberrões comem e sujam-se sob o olhar envergonhado de Sophie. Já o dia da caça é registrado com rigor documental nos cortes e zooms, dando a nítida impressão da carnificina que toma os participantes aparentemente possessos depois dos cães dilacerarem inteiramente um cervo. A isso, soma-se a usual quebra da parede que separa os personagens do público, recurso divertido que demonstra a onisciência de Tom acerca da sua própria jornada.
Dominando a cena desde que abre o seu primeiro largo sorriso, Albert Finney evita que Tom Jones transforme-se em um cafajeste por completo graças a um toque de ingenuidade e presteza próprias na maneira com que lida com os outros, especialemnte com Sophie, e é isto que torna verossímil o perdão final da moça (e duvido que o romance entre os dois funcionaria apropriadamente se o lado mau caráter e, bem, pervertido do rapaz se sobrepujasse às qualidade que o redimem).
Raríssimo caso de uma comédia vencedora do maior prêmio do cinema, e havia cerca de meia dúzia de outros candidatos mais merecedores do que ele, As Aventuras de Tom Jones é divertido e esquecível, como a história e a grande maioria das listas de melhores filmes premiados faz questão de repisar.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.