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Crítica | O Voo

Título original: Flight | País de origem: Estados Unidos | Ano de lançamento: 2012 | Dirigido por: Robert Zemeckis | Escrito por: John Gatins | Elenco: Denzel Washington, Kelly Reilly, Bruce Greenwood, John Goodman, Don Cheadle, Brian Geraghty, Tamara Tunie, Melissa Leo, Nadine Velazquez, | Duração: 2h18min.

No retorno ao live action após mais de uma década desde o lançamento do ótimo Náufrago, hiato no qual se dedicou a três boas animações criadas a partir da técnica de captura de performance, Robert Zemeckis parece um bocado enferrujado no regular O Voo. Não em matéria de técnica, algo que domina e ensina, mas em como pretende verbalizar o que deseja extrair da história do piloto de avião Whip Whitaker que, embora esteja sob efeito de entorpecentes, ainda consegue salvar as vidas de dezenas de passageiros a bordo de sua aeronave com uma manobra inacreditável e ousada. Estaria ele tentando reproduzir o questionamento de Crime e Castigo, escrito por Dostoiévski, perdoando um crime graças ao bem maior praticado por alguém extraordinário; ou talvez elaborar um novo estudo de personagem do tormento infligido pelo vício, no caso o alcoolismo; ou então, delinear o arco dramático de um sujeito prepotente e egocêntrico transformado pelas circunstâncias e religião? Abraçar tudo isso seria ambicioso, mas infelizmente é desajeitadamente realizado pelo diretor.

Roteirizada pelo indicado ao Oscar John Gatins, a história exaure as possibilidades proporcionadas pelo acidente aéreo, porém sem aprofundar-se em nenhuma. A imprensa e a opinião pública celebram Whip (Denzel Washington) por ter salvado quase todas as almas a bordo, religiosos nomeiam Deus autor do milagre, enquanto a companhia aérea e o departamento jurídico jogam a responsabilidade de indenizar no colo da fabricante de aviões e da seguradora. No meio do circo, após se isolar na sua fazenda, Whip envolve-se com a ex-usuária de drogas Nicole (Kelly Reilly) e tenta permanecer sóbrio, sem sucesso, para testemunhar perante a comissão do governo federal que apura o acidente. Há inclusive um exame de sangue que comprova que Whip pilotava embriagado, algo que o advogado Hugh Lang (Don Cheadle) sem maiores dificuldades desqualifica, evitando assim que a história converta-se em um drama jurídico. E entre alfinetadas ao fundamentalismo religioso e à legislação aérea que descaracteriza os 2 tripulantes mortos para fins de indenização por já saberem de antemão dos riscos, resta somente a batalha de Whip contra os demônios no fundo da garrafa.

Aí entrar a competente atuação de Denzel Washington que, mesmo cheia de maneirismos e vícios repetidos no decorrer da carreira (e repare no encolhimento do lábio inferior), convence do turbulento eu interior de Whip, palco da disputa entre o frio e controlado piloto capaz de aterrissar um avião nas piores condições contra o fraco e emocionalmente perturbado alcoólatra, pai de um filho que não vê há anos e incapaz de lidar com as más notícias sem recorrer a um gole da garrafa. Tridimensional e bem apresentado por Robert Zemeckis logo na cena inicial que escancara o caco da sua vida, Whip sofre de um grave problema: é difícil identificar-se com um arrogante e autossuficiente sujeito e nem o ato heroico praticado basta para passar a mão na sua cabeça já que na maior parte, ele é apenas um babaca. Se comparássemos com Bad Blake de Coração Louco, o músico alcoólatra interpretado por Jeff Bridges no papel que lhe rendeu o Oscar, Whip sequer despertaria o mínimo de simpatia e a sua mudança de atitude no terceiro ato sofre de inverossimilhança, prejudicando dentre outras coisas descobrir se Zemeckis estava ironizando a religião ou endeusando-a.

Perdoado o equívoco, Zemeckis é bem-sucedido na escolha de enquadramentos e na mise-en-scène, procurando a cada nova cena pôr-se um passo a frente do espectador e chocá-lo: um enfermeiro encobre até certo momento os pinos parafusados no fêmur quebrado do co-piloto, enquanto o ângulo e um discreto movimento do rosto revelam a cicatriz na bochecha da comissária de bordo e, claro, o belo e sutil movimento de câmera que revela dezenas de garrafas de cerveja espalhadas em frente a Whip. Zemeckis também é econômico e valoriza a percepção do espectador revelando o rumo de uma reunião apenas pelo corte seco que a sucede e que encontra Whip bêbado de novo. Entretanto, é no acidente aéreo que o cineasta maravilha, construindo uma grande sequência claustrofóbica, tensa e quase tão impactante como a vista em Voo United 93 (para mim, o melhor acidente já retratado no cinema).

Porém, nem os melhores esforços do cineasta compensam o inchaço de personagens na narrativa, e uns que sequer dizem a que vieram, como o paciente da ala terminal de câncer com conceitos próprios sobre Deus e Harling Mays (John Goodman), o fornecedor de drogas extravagante e fixado em Rolling Stones de Whip. Nem mesmo Nicole, muito bem interpretada por Kelly Reilly com seu jeitinho ímpar de tremer as pálpebras, faz grande diferença e desconfio que uma rescrita do roteiro poderia riscar a moça da história com mínima dificuldade. E no cabo de guerra em que muitos ajudam Whip a superar o vício, ou ao menos evitar a sua prisão, é o autodestrutivo piloto o único capaz de vencer a luta – sempre é – fazendo com que o investimento com personagens e passagens redundantes pareça desperdiçado e comprometendo o ritmo da narrativa que faz as mais de 2 horas parecerem mais extensas do que o normal.

Para evitar piadas prontas com o título – e há várias -, O Voo é apenas uma viagem maçante e sem grandes emoções.

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1 comentário em “Crítica | O Voo”

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