A recessão norte-americana pós-crise de 2008 acentuou os indicadores da pobreza, sobretudo no meio-oeste, onde a concentração de riqueza nas mãos dos ricos donos de terra e de campos de petróleo permitiu criar uma casta social de miseráveis, sem perspectiva de emprego, pois não há postos de trabalho, nem mesmo esperança de que amanhã poderão comprar a própria comida em vez de encontrá-la dentro de latas de lixo. Este cenário desolador é o pano de fundo de, quiça, uma geração crítica do cinema exploitation que retrata a falência do sonho norte-americano e a derrocada dos princípios basilares do capitalismo, e emprega as vítimas da decomposição socioeconômica ao lado de atores renomados, como será visto no ainda inédito A Qualquer Custo e neste Docinho da América, em exibição no Netflix, que faz um panorama mais amplo, a bordo de uma van, da situação calamitosa enfrentada pela classe média-baixa e do contraste com as mansões daqueles acima da linha de riqueza.
Escrito e dirigido pela vencedora do Oscar Andrea Arnold (de Aquário), o roteiro de Docinho da América emprega a estrutura de road trip sem permitir que a viagem desnude possível inconstância ou desarmonia, habitualmente associados a projetos similares mas desprovidos de uma âncora forte como é a protagonista Star (Lane). Pobremente escolarizada, o que é perceptível pela pronúncia e aticulação do seu inglês, e instruída pela vida, que fomentou rancor e amargura pelo sucesso financeiro de outros e sobretudo pela invisibilidade aos seus olhos, Star, cuja falta de traquejo social leva-a a confundir mostrar a língua como uma espécie de flerte, embarca, a pedido de Jake (LaBeouf), na van de Krystal (Keough) para fazer parte de uma equipe de vendedores ambulantes de revista, um conceito anacrônico tomado como desculpa para mendigar dinheiro de quem tem ou mesmo furtá-lo, e libertar-se das grades que a prendiam a uma existência medíocre e a ser apenas uma “american honey” – a garota bonita das cidadezinhas norte-americanas.
Mas os “rebeldes” a bordo da van de Krystal não são tão diferentes dos animais presos ilustrados na narrativa, como os bois no caminhão ou os cavalos dos caubóis, apenas estão em um zoológico diferente, mas a serviço do mesmo senhor, o capital, e por ele são submetidos a metas de produtividade dentro de um ambiente de liberdade mitigada, contra o sistema mas reaproveitando premissas destes, e é assim que o ópio disfarça-se da vida irresponsável de aventura, sexo e drogas. É por esta razão que Andrea Arnold e o diretor de fotografia Robbie Ryan optam pelo formato de tela na razão 1.37 : 1 e pela profundidade de campo rasa, de modo a conceber o mundo daqueles jovens tal como o envisionado por mulas com a visão periférica propositadamente tapada por recortes de papelão para, incapazes de enxergar o que há ao redor, continuarem caminhando para frente, puxando carroças até suas forças esgotarem e então serem substituídas por outras para fazerem o mesmo trabalho.
A visão semicerrada dos personagens permite que Robbie Ryan aproxime a câmera perto deles e documente suas ações por meio de uma paleta rústica de cores quentes e incidência de luz na objetiva que confere a idêntica autenticidade vista na montagem de Joe Bini, e esta, por sua vez, em face à ausência da estética plano/contra-plano, pode aproveitar-se do ritmo cadenciado de planos longos, inclusive nas cenas de sexo que estão a quilômetros de distância da romantização típica dos cinemas. Enquanto isso, a trilha sonora recruta cantores populares, como Bruce Springsteen, em letras que dialogam com o que estamos vendo em tela, em vez de serem meros adornos da ação, e quando escutamos we fell in love in a hopeless place (nós nos apaixonamos em um lugar desesperançoso), é impossível não associar o refrão com o relacionamento entre Star e Jake.
E se Shia LaBeouf emprega elementos de composição vulgares, como uma cusparada enquanto caminha debaixo do sol quente, para fazer de Jake um personagem mais humano do que apenas um instrumento narrativo para que a narrativa siga adiante, a estreante Sasha Lane, descoberta por Andrea Arnold, contrabalanceia a ingenuidade de Star com o desejo de livrar-se, a qualquer custo, da “doença da pobreza” que atormentou tantos anos de sua vida, nem que para isto faça certas coisas das quais se arrependerá posteriamente.
Tudo isto para que, no final da vida, possa olhar para trás e ver que realizou o sonho americano, o “de ter uma casa, um trailer, com árvores bem altas e muitos filhos” e, talvez, descansar em paz ignorante para o fato de que foi manipulada, inadvertidamente, pela mesma sociedade que quando jovem repudiou.
[star]
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.