Depois de George A. Romero apresentar, em A Noite dos Mortos-Vivos (1968), o clássico zumbi cinematográfico como aquele ser vagaroso, erguido dos túmulos, em estágio avançado de putrefação e fome insaciável por cérebros humanos, e de Danny Boyle, em Extermínio (2002), reimaginar o zumbi contemporâneo, motor 2.0, turbo, não como um cadáver, mas como alguém infectado por uma doença contagiosa semelhante à raiva, o subgênero zumbi foi perdendo o potencial de assustar e de discutir a sociedade à medida que se diluía em outros gêneros: a comédia (Todo Mundo Quase Morto, Zumbilândia), o romance (Meu Namorado é um Zumbi) e inclusive o cinema de época (Orgulho e Preconceito e Zumbis). Invasão Zumbi é, portanto, um bálsamo aos fãs, pois revisita a criatura popular dentro de onde foi concebida, no cinema de terror, sem deixar de lado o contexto socio-antropológico.
A trama, escrita e dirigida pelo sulcoreano Sang-ho Yeon, não procura desviar-se das convenções – não somente do subgênero, mas do cinema – ao introduzir Seok Woo (Gong), um analista financeiro de um fundo de investimento e pai ausente de Soo-an (Kim). Tão ausente que, não bastasse ser o típico workaholic e perder a apresentação da filha, ainda a presenteia com o mesmo videogame que havia dado em uma ocasião anterior. Para redimir-se, acompanha Soo-an a Busan, cidade onde mora sua ex-esposa e com a qual pretende reconciliar-se. A bordo do trem, porém, um passageiro clandestino, infectado com uma doença zumbi, ataca outro, e o que era um zumbi logo viram dois, então quatro, e assim sucessivamente nesta progressão geométrica que reflete, dentro do microuniverso narrativo, a escalada da epidemia na Coreia do Sul.
Evidentemente que a atitude de Seok é proteger a filha a todo custo, nem que para isto precise ensiná-la a preocupar-se somente consigo, um conselho alinhado com a função que desempenha na bolsa de valores. Mas a trama não gira apenas em torno de pai e filha, e aproveita para introduzir personagens de interesse, como o casal grávido Hwa (Ma) e Geyong (Jung), os estudantes Gook (Choi) e Ahn (Sohee) e Suk (Eui-sung Kim), de fato, o vilão da narrativa já que exibe um comportamento ainda mais individualista – e assassino – que Seok.
O arco dramático de Seok – leia-se: a trajetória iniciada no sujeito egoísta e babaca, e finalizada no altruísmo – é, sem dúvidas, o elemento mais fascinante de Invasão Zumbi, uma vez que cada obstáculo provocado pelos zumbis (ou por homens) esteja acompanhado de uma mudança de comportamento gradativa e sutil do protagonista, reforçada pela boa interpretação de Yoo Gong.
Evidente que o elemento espacial da narrativa, o trem, apresenta-se como um acréscimo significativo no subgênero, tanto por potencializar a ameaça dos zumbis dentro dos corredores claustrofóbicos sem rotas de fuga senão seguir adiante, quanto por revestir-se de interpretações simbólicas pertinentes. O trem aqui, como recorte da sociedade, transporte (e aprisiona) passageiros juntamente com criaturas isentas de resquícios de humanidade, às quais aqueles devem sobreviver, apesar de acabarem contaminando-se, direta ou indiretamente, pelo individualismo cruel e cego transmitido. Tal como o protagonista, um sanguessuga como afirma Hwa, fazia com seus clientes, inclusive, de modo que o percurso assemelha-se ao caminho de Seok: do caos social ocasionado pelo individualismo (da cidade tomada pela infecção) até a esperança advinda do desprendimento (representada por Busan).
A menção à cegueira não foi aleatória: os zumbis aqui atacam unicamente quando estimulados visualmente por suas presas, mantendo-se em estágio letárgico no restante do tempo. Este elemento, usado com resultados duvidosos, proporciona à narrativa o ponto de partida da interpretação social – precisamos enxergar o próximo para que o ‘canibalizemos’ -, mas também cenas embaraçosas, como aquela em que os personagens dispõem de poucos minutos para atravessar um vagão engatinhando no bagageiro, embora no grupo houvesse criança, grávida e idosa que sequer deveriam ter condições físicas de alcançar aquele nível, quanto mais em tempo tão escasso. Aliás, a tentativa do filme em estabelecer-se como um capítulo de Guerra Mundial Z, o livro, resulta em sequências inspiradas na adaptação – o aglomerado de zumbis – e felizmente sem o excesso de efeitos especiais que higienizava a ação das criaturas no longa estrelado por Brad Pitt.
De uma filmografia conhecida por ser tão impiedosa quanto é violenta, Invasão Zumbi beneficia-se da coragem que falta a grande parte da produção norte-americana e oferece um retorno às origens do subgênero zumbi: do terror da ameaça aos questionamentos morais e sociais provocados por ela.
[star]
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.