Não seria exagero afirmar que parte do meu conhecimento obtive da arte, direta ou indiretamente, em particular a respeito de questões geopolíticas, socioeconômicas, históricas e culturais transcorridas em países irmãos e que escapam do domínio do ser humano médio, atarefado à rotina local a ponto de não oportunizar a obtenção de novas informações senão daquelas de aplicabilidade imediata no cotidiano. A arte alimenta a curiosidade em descobrir além do que há na superfície, consequentemente, em adquirir uma bagagem perene que estimula a reflexão e a empatia para com o próximo, como faz este terror Sob a Sombra, que oferece a oportunidade de mergulhar na históriar do Irã, desde a revolução que depôs o Xá pró-ocidente e instaurou a república teócrática islâmica, e a subsequente guerra contra o Iraque, que perdurou por quase duas décadas.
O contexto político deste conturbado período está simbolizado, em uma linguagem narrativa acessível e prática, na trama escrita e dirigida pelo estreante Babak Anvari, especialmente no que toca às drásticas mudanças que atinjiram o sexo feminino com a chegada do Aiatolá xiita ao poder, cujo retrato estampa a parede do reitor da mesma universidade para a qual Shideh (Rashidi) deseja retornar e concluir o curso de medicina. Porém, por haver apoiado o regime do Xá durante a revolução, este pedido foi prontamente negado, frustrando-a ainda mais a reação passiva do marido Iraj (Naderi), também médico e convocado ao fronte de batalha para atender os feridos da guerra. Contra o pedido do marido, Shideh e a filha única Dorsa (Manshadi) permanecem em casa, sob ameaça de ataques de mísseis, enquanto os vizinhos, um a um, começam a partir de Teerã. É quando uma entidade sobrenatural começa a ameaçá-las.
Assim como em The Babadook, o terror da narrativa segue a cartilha dos elementos do gênero: portas se abrem sozinhas, barulhos são entreouvidos, sombras são avistadas e não se espante se uma personagem bisbilhotar sob a cama em determina ocasião. Entretanto, a forma de empregar as convenções do gênero é radicalmente diferente do molde praticado habitualmente em Hollywood, em que o fim são os sustos e sobressaltos, e não a construção da atmosfera tensa ou a interrelação dos acontecimentos sobrenaturais com a frágil situação das personagens.
E coloque-se no lugar de Shideh (empatia, de novo): ontem, era independente, vestia-se da forma como desejava, podia dedicar-se aos estudos e realizar o sonho da mãe de tornar-se médica; hoje, sequer pode pisar fora na rua sem a burca sob pena de ser chicoteada em praça pública. Repare, então, que o objetivo da narrativa é associar o terror, na forma mais pura, a abdução da própria filha, no misto de sentimentos que assolam Shideh: a fita VHS de aula de ginástica de Jane Fonde é um símbolo caprichosamente usado para este fim, pois a destruição do objeto representa a própria ruptura do estilo de vida ocidental, antes praticado no Irã, em direção à erradicação das liberdades femininas e à submissão da mulher à figura do homem.
Não é em vão que Babak Anvari represente o djinn, a entidade sobrenatural que assola a família e está no Alcorão (repare que é do livro sagrado do islamismo que decorre a fonte do mal na narrativa, outro símbolo empregado com destreza), na forma de uma burca, pois a simbologia arraigada na vestimenta dispensa o que, em palavras, seria somente redundante. E o que dizer do garotinho que, embora mudo, mostra-se capaz de susssurrar palavras assustadoras no ouvido de Shideh e Dorsa? Estaria a narrativa sugerindo que mesmo o homem iraniano mudo – leia-se: sem voz – agora poderia ameaçar as mulheres?
Bastante sugestivo no ato final, quando Shideh e Dorsa precisarão abandonar a representação material de sua individualidade para permanecerem vivas, Sob a Sombra, o escolhido para representar o Reino Unido (?) no Oscar (em uma daquelas desvirtuações absurdas das regras da Academia), apropria-se do gênero narrativo para discutir, metaforicamente, o terror enfrentado pelas mulheres durante a mudança de paradigma no Irã.
E, quem sabe, incentivar o espectador a aprender sobre a Revolução Iraniana e a Guerra contra o Iraque.
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Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.