Apesar de o título sugerir o contrário, geralmente o relacionamento entre o crítico de cinema e o espectador-leitor é pautado no respeito e na cordialidade construídos sobre o diálogo argumentativo. A favor do espectador-leitor – a qualificação adicional é importante, como nós veremos adiante – está os sentimentos que a obra cinematográfica despertou; a seu tempo, o crítico entende – ou deveria – a infraestrutura da arte e quais as ferramentas que o realizador tem a disposição para provocar tais emoções e reações. A relação é uma via de mão dupla: de cá pra lá flui conhecimento crítico, avesso ao empirismo por estar estabelecido através do estudo da arte; no sentido oposto, a sensibilidade imprescindível para aprimorar a habilidade de dialogar com o público que se pretende alcançar, pois às vezes parece que os críticos somente estão conversando uns com os outros. Não é esta a intenção.
Mas esta semana, ao publicar crítica de Beleza Oculta, e prevendo a reação do público após descobrirem que eu não gostei de Estrelas Além do Tempo, senti a necessidade de discutir, neste editorial, o ponto em que a relação até então educada dá sinais de fragilidade.
Antes, um parêntese: há espectadores e espectadores. Os fãs de obras literárias, super-heróis, jogos de video-game etc passam pelo processo de apropriação da obra original a ponto de serem incapazes de dissociar seus sentimentos acerca da adaptação cinematográfica do próprio significado de idolatria – digo mais, um comportamento compreensível. Esses espectadores não estão interessados em discutir os pontos levantados na crítica, apenas desejam que esta reafirme-os. Isto explica o crescimento vertiginoso dos sites nerd ou geek que servem, em bandeja de prata, resenhas benevolentes escritas por uma espécie de avatar do próprio público que representa. E você sabe que está lidando com esse espectador ao receber feedback do tipo: “você entenderia se tivesse lido o livro” e variações.
Esse texto não é endereçado a esse grupo, por isso cunhei o termo espectador-leitor. Continuemos.
Os filmes acima citados, por mais diferentes que sejam, têm em comum duas coisas: a história é inspiradora e emocionante; a narrativa, bem, nem tanto. Aí está o ponto de ruptura: o espectador, apesar de estar influenciado pelos artifícios narrativos, é conduzido pela trama; entretanto, o crítico, enquanto reconhece a importância daquela, sabe que é somente mais um dos muitos elementos que integram a arte. Em síntese: o espectador curte a história; o crítico, a forma com que ela é narrada.
Beleza Oculta enfrenta a perda de um ente querido – uma filha de 6 anos! – através do recursos fantásticos típicos do subgênero natalino. Já Estrelas Além do Tempo narra o papel determinante de Katherine, Dorothy e Mary na corrida espacial norte-americana, combatendo a segregação racial e o machismo dentro da NASA. São temas que, naturalmente, apelarão para a empatia do espectador, embora eu tenha enxergado, sob a superfície, a forma precária, apelativa e maniqueísta da arte. Ao me deparar com isto, inconscientemente, desligo meus pedreiros cerebrais que se esforçavam para construir pontes sentimentais com a narrativa, tal como fazem os amantes ao descobrirem que os amados não são exatamente quem pensavam ser.
Provocar lágrimas ou esturpor não deveria ser motivo para que um filme se gabasse de sua própria competência. Chorei copiosamente em Toy Story 3 quando Andy doa os brinquedos que tanto amava. Fato semelhante aconteceu em Uma Prova de Amor ao bater o olho numa garotinha de cabeça raspada, efeitos da quimioterapia, acompanhado de trilha sonora dramática. O que distingue as cenas? Esta me faria chorar em qualquer situação porque é da essência dela, o que não acontece com aquela, por mais que haja remissão nostálgica à infância. Uma é fruto do processo de construção da narrativa, a outra é simplesmente circunstancial. É humano oferecer o ombro e chorar junto de quem perdeu a filha com apenas 6 anos, isto não é mérito de Beleza Oculta. Pelo contrário, a trama deveria ser acusada de explorar a tragédia do protagonista (ou exploit, que é o termo em inglês que carrega conotação negativa), com o fim meramente de desentupir os canais lacrimais.
Igualmente simples é gerar a revolta, furor. Recentemente, o ótimo O Homem nas Sombras realizou malabarismos com isto: colocou o espectador a favor e contra o cego vítima (ou ‘vítima’) dos inconsequentes rapazes que invadiram sua casa para roubar sua pensão. Michael Haneke, em Funny Games, questionou por que nós nos importamos com o destino daqueles personagens que acabávamos de conhecer. Estrelas Além do Tempo – assim como Histórias Cruzadas e Um Sonho Possível fizeram antes – aposta na própria capacidade de provocar indignação do espectador contra parte dos homens brancos que segregaram, por causa da raça, mulheres geniais à situações sub-humanas. Como não torcer pelo trio adorável de protagonistas contra versões modernas dos escravagistas de ontem? Eu digo como.
Por mais que reconheça a importância da história para inspirar o sentimento de identidade e superação da comunidade negra, é difícil dar crédito a um trabalho que devolve, desta vez à parcela menor de brancos bondosos, o papel decisivo de derrubar o preconceito marretando, literalmente, a placa que segregava o uso do banheiro, sob o argumento de que “brancos e negros urinam da mesma cor“. Afora reduzir a imporância do trio central, esse recurso também objetiva atenuar o débito histórico do homem branco para com os negros. Dá até para ver segmentos que se gabariam usando a citada cena como justificativa para sua inação nas questões atuais. A título de comparação, o polêmico O Nascimento de uma Nação, a versão de 2016, devolve aos negros o direito de decidirem, sozinhos, o próprio destino.
Minha intenção não é a de adulterar a experiência emocional do espectador-leitor havida com as obras citadas ou similares, mas de educá-lo a valorizar aquelas obras cuja desenvoltura sentimental é pensada, orquestrada e executada não preguiçosa ou casuisticamente como acima.
Com o tempo, você aprenderá a valorizar as lágrimas que rolam teimosamente pelo rosto ou os sentimentos contraditórios que sentir, e saberá, inequivocamente, quando eles são frutos do bom cinema.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Editorial | O Povo contra o Crítico de Cinema”
filme de festival que é bom
Alguns sim; outros, não. Como tudo na vida.