Após o papelão ocorrido no Oscar, Moonlight – Sob a Luz do Luar ganhou adjetivos reducionistas – até de filme de esquerdista ele foi chamado – que falham em contemplar sua dimensão temática: a trajetória do protagonista em desconstruir e repelir o arquétipo que a sociedade lhe impôs, às vezes com violência, desde quando nasceu do ventre da mãe, para ser o indivíduo que verdadeiramente é: indivisível, incapaz de ser definido a partir de características emprestadas de terceiros, tão únicos e singulares quanto ele próprio é. Moonlight representa a vitória contra a estereotipagem, e isto faz com que seja entristecedor comprimi-lo dentro de expressões requentadas que vão de encontro a sua maior virtude: a sensibilidade.
Apesar de importante ressaltar que, após 89 edições, um filme com um elenco todo negro e com a temática LGBT finalmente recebeu o prêmio máximo da cerimônia, Moonlight é mais do que os chavões imediatistas teimam em afirmar. Por mais que esteja inserida dentro da comunidade negra e tangencie a problemática das drogas, o reduto para jovens à margem da sociedade, sem esperança ou oportunidade, a narrativa apela também para substratos raciais e sociais além de seus muros. E, ainda que se preocupe em acompanhar o processo de descoberta da identidade através da sexualidade, a narrativa sussurra nos ouvidos dos que se indagam diariamente acerca de quem se é e de qual papel devem desempenhar na sociedade para sentirem-se plenos de si. Tão dotada de empatia e humanidade, a narrativa dirigida e adaptada por Barry Jenkins (que venceu o Oscar de melhor roteiro adaptado) parece-me capaz de tocar o coração até dos que mais carentes nesses sentimentos.
A trama subdivide-se em três capítulos, intitulados pela maneira com que o protagonista é conhecido ao longo da vida: Little, Chiron e Black. Quando criança, o tímido e retraído Little (Hibbert) refugiou-se do bullying dos colegas e do vício em crack da mãe (Harris) na convivência com o traficante de drogas Juan (Ali, o primeiro muçulmano a vencer um Oscar de atuação), escalado, fortuitamente pelo destino, para ser a figura paterna que o garoto não teve. Ao atingir os hormônios da adolescência, Chiron (Sanders) agora deve administrar os desejos carnais ainda não tão claros que sente por Kevin (Jerome) enquanto enfrenta, física e mentalmente, a agressão do valentão da escola (Decile). Anos depois, Black (Rhodes), traficante de dorgas em Atlanta, regressa a Miami após receber misteriosa ligação de Kevin (Holland).
As frações dessa vida setorizam certas questões em capítulos específicos (a busca da figura paterna, a descoberta da sexualidade) enquanto tornam outros temas pervasivos e indeléveis no curso da narrativa (a relação mãe e filho, a autoidentificação) modelando um tipo de estudo de personagem atípico e fascinante, especialmente consideradas as possibilidades que o contracampo oferece ao espectador. E apesar de as passagens entre estágios da vida não serem suaves – a montagem de Joi McMillon e Nat Sanders nem quer que elas sejam, pois a tela escura é determinante na quebra de paradigma acarretada pelo amadurecimento etário -, o que existe no não-visto é não menos do que intrigante para entender o complexo desenvolvimento psicológico de Chiron. Em certo momento, um diálogo expositivo, porém necessário, revela que importante personagem morreu, embora só possamos supor as causas do óbito e principalmente as consequências da perda na vida do protagonista, como ele reagiu àquele momento ou como ele extravasou a angústia.
A busca incessante para compreender quem é Chiron é maximizada pelas decisões de casting de Jenkins, e refiro-me à escalação de Trevante Rhodes, cuja fisionomia avantajada e ameaçadora, figurino tipado de rapper – a dentição dourada é exagerada mas, de novo, alguém pode só supor a respeito do que levou Chiron a substituí-la – e o jeitão defensivo disfarçam a insegurança e o frangalho emocional de quem experimentou brevemente o que a intimidade poderia proporcionar. E esta cena, em especial, reveste-se de sensibilidade na escolha da locação (uma praia deserta) e da iluminação (a luz do luar) e na atuaçã0 significativa (repare a forma com que Jharrel Jerome – ótimo, a propósito – toca o rosto de Chiron ou põe a mão no seu pescoço) para narrar o primeiro contato homoafetivo do protagonista. Tudo isso é exibido de forma tão lúdica que não seria estranho crer que Chiron, após passados determinados acontecimentos na narrativa, agarrou-se a essa memória com a mesma força com que tentou repeli-la.
Mas isso iria de encontro ao que Juan lhe ensinou, e Mahersala Ali habilmente capturou as contradições de um personagem cuja generosidade em acolher Chiron conflita com a natureza do seu “trabalho” que, direta ou indiretamente, corrói o espírito de pessoas e famílias; a reação do ator, envergonhado, após certa indagação de Chrion já é suficiente para que ele seja o merecedor do Oscar. Já Janelle Monáe traz o carinho acolhedor que falta em Naomie Harris, cuja atuação envolve o físico (o emagrecimento da atriz e o andar curvado e decrépito enquanto sobe as escadas da casa) sem dispensar o íntimo, e a peculiaridade de Harris representar três versões diferentes de si própria, sem errar o tom em nenhuma, é testemunho do talento imenso demonstrado. (Hipoteticamente, não havendo fraude de categoria e Viola Davis sendo indicada à categoria principal por Um Limite entre Nós; ela, além de vencer Emma Stone, abriria espaço para Harris disputar, em pé de igualdade com Michelle Williams, o prêmio de coadjuvante).
Usando os flares como sinal de realismo, no que nem é o destaque da fotografia de James Laxton, cujo trabalho de cores é espetacular em reproduzir a intimidade de um protagonista introspectivo e retraído, e empregando detalhes no design de produção (a coroa no painel do carro, por exemplo) que dispensam palavras para descrever sua personalidade, Moonlight – Sob a Luz do Luar não é importante somente pela diversidade que trouxe à premiação – jamais diminuiria uma vitória igual a essa -, e sim sobretudo pela sensibilidade com que enxerga o indivíduo humano.
Afinal, Chiron pode ser uno e exclusivo mas, paradoxalmente, representa todos nós.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.