Em vez de ocupar-se com a discussão da violência doméstica e do abuso emocional com base nos traumas deixados em vítimas envergonhadas e amedrontadas o suficiente para não confessar o que passaram a seus pares, Paixão Obsessiva satisfaz-se em ser a pior estirpe de narrativa: aquela que, comandada por uma mulher (a estreante Denise Di Novi), coescrita por outra (Christina Hodson) e protagonizada por mais duas (Dawson e Heigl) acerca de tópicos que concernem exclusivamente a elas, termina por se revelar mais machista do que se fosse dirigida por um reacionário, integrante do partido republicano, seguidor de Donald Trump e de cuja boca o preconceito assumiria a forma de diálogos nojentos como aquele dito por Tessa à filha: “a égua sabe quando você está no controle”.
Felizmente, este vulgo exemplar do subgênero de ‘ex-obsessivos(as)’ dispensa maiores comentários para ser desprezado pelo que verdadeiramente é: um thriller ruim. Também escrita por David Leslie Johnson (de A Órfã, A Garota da Capa Vermelha e Fúria de Titãs 2, somente ‘preciosidades’), a trama, aparentemente uma reimaginação californiana do péssimo Obsessiva, tem início após a bem-sucedida e independente Julia (Dawson), deixar a startup que fundou para ir morar na costa leste com o noivo David (Stults) e sua filha (Kai Rice). Entretanto, Tessa (Heigl), a ex-esposa, não aceita isto de bom grado e, depois de obter acesso ao celular da desafeta (cuja senha, lógico, é sua data de aniversário), descobre acerca de seu ex-namorado abusivo e arquiteta um plano cuja consequência imediata e grosseira não afasta a constatação óbvia de que ela não reaverá sua família.
Mas sutileza não é algo para se esperar de Tessa, descrita tão pobremente por sua predileção por comida orgânica, pela coleção de maquiagens ou por transar com desconhecidos no carro para então abandoná-los na chuva que o apelido de ‘Barbie psicótica’ soa tridimensional em comparação. Já a decisão de contrastar sua personalidade psicótica com figurinos imaculados só não é mais óbvia do que a atuação carregada de excessos de Katherine Heigl, que falha na tentativa de reprisar a megera vivia por Glenn Close em Atração Fatal na mesma intensidade com que me causou vergonha alheia o adeus cínico ao deixar um restaurante. E, embora o roteiro tente humanizar Tessa em sequências ocasionais e procurar justificar seu comportamento no relacionamento tumultuado com a mãe ácida, as descobertas sobre seu passado e trechos caricaturais mais frequentes do que o desejado trafegam na contramão.
Julia também não tem sorte na narrativa: introduzida por diálogos expositivos (“Você não é sua mãe e eu não vou beber igual a seu pai”) e simplificada por haver sido vítima de violência doméstica, a insegurança com que lida com a mudança ao novo lar é incompatível com o que se esperaria de uma executiva de sucesso enquanto a passividade não ajuda Rosario Dawson, normalmente acostumada a interpretar personagens repletas de personalidade. Considerando os clichês (em forma de pesadelos e visões) e os mal-entendidos artificiais (como o desaparecimento de Lily), a protagonista permanece de mãos amarradas até o inevitavelmente violento terceiro ato.
Isso não é spoiler, pois a narrativa inicia-se no desfecho, ou próximo deste, para então retratar em longo flashback de 6 meses a cadeia de eventos que levou aquele particular momento. O emprego deste recurso genérico não ajuda a trama, cujo desenrolar desconhece a existência de tons senão os dos maniqueístas preto e branco, portanto, não abre espaço ao mistério que deseja construir através da sequência inicial ou de decisões narrativas ineficientes como a de manter o anonimato do invasor domiciliar embora não houvesse dúvida de sua identidade.
Porém, nem a execução frustrante nem o machismo velado de que as mulheres devem resolver suas rusgas com unhadas e cabelos arrancados mascaram a certeza de que os acontecimentos de Paixão Obsessiva poderiam não atingir as proporções caso Julia confidenciasse os tormentos passados. Que a narrativa não entenda ser esta a consequência dos abusos sofridos e da perda de confiança no próximo, mas tão somente a inação da protagonista, é o mais imperdoável pecados deste projeto de thriller.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.