“Regra nº 1: Conheça o seu público”, comenta o Sr. Ninguém (Russell) em determinado momento de Velozes e Furiosos 8, naquela que é a chave para entender o sucesso da longeva franquia que, a partir do quarto capítulo, descobriu nova identidade e reencontrou o sucesso através da autoparódia e do absurdo, características que atraíram uma legião de fãs ainda maior do que aquela que apenas objetificava carros tunados e mulheres de roupas curtas com idêntica intensidade (inclusive, a narrativa revisita essa fase na cena inicial). De certa maneira, a série surfou, acidentalmente, na crista da onda do subgênero de equipes de super-heróis e alcançou o mesmo público-alvo da DC ou Marvel, afinal quem discordaria que a “Família” encabeçada por Dominic Toretto (Diesel) somente substituiu os superpoderes e os uniformes coloridos pelos possantes com que realizam atos que desafiam a lógica?
Escrita pelo mesmo Chris Morgan dos cinco capítulos anteriores, o que ajuda na tentativa de manter a coerência interna de uma franquia que já testemunhou a amnésia e a restauração da memória, a ressurreição de personagens tidos como mortos ou a transformação de vilões em heróis, artifícios emprestados das histórias em quadrinhos mais pueris, a trama inicia-se com a lua de mel de Toretto e Letty (Rodriguez) na paradisíaca Cuba, e o fim do histórico embargo mostrou ao mundo que a ilha de Fidel Castro nada mais é do que uma franquia colorida e caribenha de Miami. Após proteger a honra do primo atirando-se de um carro em chamas e em alta velocidade para escapar ileso da morte, Toretto esbarra na misteriosa Cipher – “um ato digital de Deus” no diálogo que define a linda, talentosa e socialmente engajada Charlize Theron –, que o chantageia a trair a Família e integrar sua gangue de ciberterroristas.
É isto que Toretto faz ao roubar uma poderosa arma de pulso eletromagnético e abandonar Luke (Johnson) a própria sorte, condenando-a à cadeia onde será vizinho do mesmo Deckard (Statham) que enviou para lá. Mas, naquele impulso ilógico e tacanha que apenas faz sentido vindo dos personagens da série, Luke e Deckard escapam da prisão para jogarem no mesmo time, aliados a Letty e sua turma, com a missão de capturar Toretto e impedir os planos de Cipher, que envolvem o roubo de códigos nucleares e o início de, talvez, a terceira guerra mundial. Uma ótima oportunidade para que os personagens, em vez de se desesperarem com o iminente desastre, entreguem-se à farsa brincalhona encabeçada pelo Sr. Ninguém, uma versão do “M” de James Bond que não perde a pose e a piada até quando sua base secreta é invadida.
Essa indiferença associada à autoconfiança e insensatez dos personagens são atributos encantadores por que utilizados da maneira correta por realizadores cientes do quão ridículo é a ideia de empregar, por exemplo, bolas de demolição no auxílio de fugas ou perseguições em alta velocidade sobre a superfície de gela finíssima. Dá até para supor que, durante as reuniões de elaboração do roteiro, após os integrantes quebrarem a cabeça tentando descobrir o que poderia ser mais absurdo que o ataque dos denominados “carros-zumbis” e seu posterior suicídio atirando-se de prédios de estacionamento em Nova Iorque, algum estagiário, gaguejando um tanto quanto desconfiado, sugeriu a recriação do icônico Encurralado de Steven Spielberg, porém substituindo o caminhão por um submarino. Pá, não demorou para que ele fosse nomeado uma das cabeças pensantes do estúdio Universal.
Brincadeiras a parte, Velozes e Furiosos 8 é tão bom quanto é sua capacidade de ser absurdo, o que não o isenta de cometer exageros. A duração desnecessariamente inchada (136 minutos) vai ao encontro dos blockbusters contemporâneos, inseguros de tal forma em serem mero entretenimento passageiro que precisam se autoafirmarem. E a narrativa dirigida pelo inconstante F. Gary Gray (dos ótimos Uma Saída de Mestre e O Negociador e também dos ruins O Vingador e Código de Conduta) está ciente da aspiração que tem e poderia emagrecer 15 a 20 minutos sem prejuízo. Ou você considera a exibição do Haka, uma dança neozelandesa usada para intimidar adversários, a troca de ofensas entre Luke e Deckard, divertida a princípio até ficar repetitiva, e a verborragia irritante de Roman realmente necessárias? E o que dizer da batalha entre as hackers Cipher e Ramsey cheia de cof cof adrenalina e intensidade cof cof, ou da comoção dramática gerada ao redor da traição de Toretto quando nem o espectador mais ingênuo acreditaria na artimanha?
Por outro lado, F. Gary Gray, apesar de planejar sequências grandiosas, montadas com agilidade, intensidade e felizmente não retalhadas a ponto de se tornarem incompreensíveis, abusa de recursos da desaceleração e do slow motion, além de efeitos especiais computacionais pouco convincentes e até grosseiros, como o plano aéreo de uma dezena de carros dobrando a esquina. Isto sem contar que há problemas na decupagem que prejudicam sequências como a escapada de Toretto, apesar de estar encurralado, e a submersão de um submarino içado – e comprovam que o ex-estagiário de boas ideias havia faltado nessa reunião específica. Possivelmente, ele também se ausentou quando introduziram o novelão mexicano em torno do desejo materno de Letty e como isto acena para o óbvio destino da personagem que recém regressou à franquia.
Já a adição da rodada é a vilã interpretada por Charlize Theron, contraditória ao arregalar os olhos psicóticos enquanto mantém a voz sob controle, somente até chegar o momento de acionar o modo Rainha Má. E se a intenção era assumir de uma vez o caso amoroso com o subgênero super-heróis, a franquia acertou em vestir Dominic Toretto de supervilão, literalmente, o que comprova que Velozes e Furiosos 8, mais do que muita produção sisuda no mercado, sabe exatamente a tolice inconsequente e inocente que é, e a expectativa do público-alvo a que serve.
Com isto, não há como condenar a série.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.