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Crítica | O Cidadão Ilustre

O Cidadão Ilustre

117 minutos

Daniel Mantovani (Martínez) é um escritor argentino, radicado na Espanha, vencedor do Nobel de Literatura e cujos livros retratam inequivocamente a vida pacata e os habitantes da municipalidade onde nasceu e para a qual retorna quatro décadas após receber o mesmo tipo de convite que costumeiramente rejeita. O Prefeito deseja premiá-lo com a medalha de cidadão ilustre e aproveitar sua presença para participar de atividades extraordinárias, como lecionar para pequeno grupo de escritores ou presidir o júri de um concurso local de pintura. Inicialmente fascinados com o convívio com Daniel, os residentes logo se frustram com suas recusas de ser quem não é ou de agir de modo que sua ética não permite, afora outros incidentes que, gradativamente, armam esta comédia de humor negro escolhida para representar a Argentina no Oscar do ano passado, e vencedora do prêmio de melhor ator no Festival de Veneza.

O prêmio parece-me justo, afinal Oscar Martínez assimila as idiossincrasias do protagonista de tal maneira que o jeito egocêntrico do escritor não se torna empecilho para que possamos admirá-lo pelo conteúdo que tem a oferecer, em vez de nos prendermos a pessoa que é. Assim, muito embora o discurso de agradecimento do Nobel exagere no pedantismo, de modo que a reação inicial de incredulidade converte-se imediatamente em repulsa, não dá para ignorar que os posicionamentos de Daniel, duros e irredutíveis, mostram-se justos, sobretudo caso aconteça a empatia em se colocar na sola de seus sapatos. Afinal, é difícil reprovar Daniel por se recusar a atender os mais absurdos pedidos de seus supostos fãs, e mesmo a falta de generosidade com traços de crueldade encerra uma lógica, com a qual discordo, mas que se mostra correta dentro da cabeça daquele homem, ainda que isto não obstaculize o direito de reconsiderar sua decisão.

Também é interessante enxergar a forma com que protagonista mostra-se aberto à experiência invasiva diante de si, em que sequer pode caminhar nas ruas sem ser filmado pelos celulares de terceiros que jamais leram nem mesmo lerão suas obras literárias, mas o acompanham movidos pelo composto mórbido de estarem diante de alguém maior do que as próprias ambições que possuem. Esta condescendência de Daniel justifica-se por causa do trabalho de campo desenvolvido, em que cada interação equivale a material inédito para escrever seu novo romance, aceitando, inclusive, que página de seu livro seja rasgada para ser usada como papel higiênico. Mas também há certa penitência tácita em suportar ofensas e abusos gratuitos, enquanto permanece inabalável. E, do ponto de vista da retórica vazia, parece interessante imaginar como Daniel descreveria a sensação de passear sobre o carro de bombeiros ao lado da miss local ou a propaganda inesperada realizada durante uma entrevista realizada.

A própria cidadezinha de Salas desponta como uma personagem caricatural que, ao mesmo tempo em que se revela através de casas tímidas, ruas desertas, comércios de portas fechadas e habitantes esquisitos, tenta fugir do destino previsível que a história lhe reservou em um esforço inútil, é verdade, mas não menos intrigante de se acocorar na cultura, embora sem a mesma genialidade de Daniel. Isto explica a obsessão de um competidor em ser o primeiro lugar do concurso de pintura (uma brincadeira divertida para o protagonista) e, principalmente, os doces confeitados com marcante cafonice. Apesar desta mediocridade, não há outra musa senão Salas que inspire o escritor a produzir obras-primas, uma das formas com que a dupla de diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn discute a arte em geral.

A propósito, a dupla termina espelhando o escritor literário à figura do profeta, que não era acolhido na própria casa e pátria. E faz sentido esta aproximação, já que Daniel traja-se como um deus quando cria personagens e obstáculos e decide seus destinos, ao mesmo tempo em que os habitantes elegem-no como uma tal deidade (termo que ele emprega em determinado instante). Porém, da mesma forma que ocorria na Bíblia, o relacionamento entre Daniel e a cidade fragiliza-se rapidamente (repare que, à medida que a narrativa avança, a presença nos seus eventos míngua) até chegar ao ponto de ele precisar sair pela porta de trás, e o humor que existe neste conceito é tão sofisticado que serve de exemplo para reforçar que o conteúdo simples e honesto pode ser mais subversivo do que algo rebuscado.

Mesmo que apresente uma estética semi-amadora – repare o emprego excessivo de dissoluções na montagem de Javier Braier e a decupagem primitiva de planos feita pela dupla de diretores, desempenhando também o papel de diretores de fotografia, inclusive repetindo exaustivamente o close em que Daniel discursa para uma audiência antes de o corte imediato revelar quantos estão nela ou o tilt da câmera para revelar itens de um quarto de hotel – e um formato capitular que desde cedo insinua para onde caminhará o desfecho, O Cidadão Ilustre é uma comédia com humor inteligente, irônico e pertinente, gostosa de se assistir e com uma performance central caprichosamente bem controlada.


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