A vigésima produção do Universo Cinematográfico Marvel recapitula o escapismo descontraído de aventuras fantásticas datadas dos anos 90, protagonizadas por super-heróis ou não, em que porquês e agendas secretas eram menos importantes do que a diversão que o todo proporcionava. Nem parece que o estúdio que, há poucos meses, transformou em pó tudo o que os espectadores haviam imaginado em seu “Vingadores: Guerra Infinita”, possa oferecer uma comédia familiar leve e descompromissada, em que predominam valores mais importantes do que recordes de bilheteria ou cenas de ação explosivas, e exista certa dose de independência em relação às produções antepassadas.
Dito isso, após situar a narrativa dentro da cronologia do universo compartilhado e explicar, com riqueza engraçadinha de detalhes factuais e jurídicos, por que Scott Lang (Rudd) está em prisão domiciliar, o roteiro de “Homem-Formiga e a Vespa” preocupa-se somente com a missão de resgatar, do mundo quântico onde está há 30 anos, Janet Van Dyne (Pfeiffer), a Vespa original. A cientista, através de um conceito complicado de entrelaçamento quântico (“vocês adicionam quântico em tudo o que falam”, indaga Lang), transformou a mente do super-herói em uma antena para informar suas coordenadas a Hank Pym (Douglas) e Hope (Lilly), que construíram um dispositivo para acessar aquele domínio. Porém, também estão interessados na tecnologia o gângster Sonny Burch (Goggins) e a Fantasma (John-Kamen), que pretende empregar a energia quântica para curar seus “super-poderes” (intangibilidade e invisibilidade), antes que estes a matem.
À medida que mergulhamos no roteiro escrito por 10 mãos (!), a caixa de Pandora científica de décadas dos quadrinhos é aberta, e com ela surgem explicações superficiais que têm a máxima compreensão de que são dispensáveis para que o espectador possa aproveitar o que a narrativa propõe a oferecer. Não adianta nada posar questões em como Janet sobreviveu por três décadas em um ambiente inóspito ou como o Dr. Foster (Fishburne) pretende curar a condição da Fantasma, se estas são tão irrelevantes quanto as perguntas mais acidentais, do tipo: como ninguém percebe o prédio que desaparece e reaparece no meio de um bairro residencial ou como o incompetente Jimmy (Park) permanece sendo agente do FBI.
Por bem ou por mal, o roteiro desta continuação é mais uma desculpa para que bons atores – em particular Paul Rudd, um astro carismático e que transforma o ato de ser super-herói em uma brincadeira, ou Michael Peña, que permanece sendo o alívio cômico mais eficiente da Marvel – continuem bons pagadores de suas dívidas, enquanto se distraem através da lei do menor esforço. Michael Douglas, Michelle Pfeiffer, Laurence Fishburne, atores talentosos, não têm dificuldades para incutir em seus personagens a carga dramática mínima necessária para que a narrativa não fuja do trilho que percorre comodamente, e note que sempre que o roteiro insinua desconstruir a imagem de Pym através das críticas de Foster, bruscamente o assunto muda com um conflito a ser contornado.
De modo parecido, os problemas familiares de Lang parecem estar resolvidos em definitivo (o companheiro de sua ex-esposa o adora, sua filha o idolatra), assim como os profissionais, e embora o roteiro ensaie problemas empresariais, logo quando repara que a subtrama não vai resultar em nada proveitoso, ignora-a completamente. O “acréscimo” – pois já estava no antecessor – é a presença mais ativa e intensa de Evangeline Lilly, agora vestindo o traje que era da mãe.
Com tantas concessões, o diretor Peyton Reed cumpre parte da pretensão da narrativa, a de divertir com cenas bem-humoradas – inclusive a mimetiza o melhor momento do antecessor – e situações inusitadas proporcionadas pela habilidade do herói. Quanto a outra parte, Reed permanece devendo, pois as cenas de ação empregam com pobreza as muitas oportunidades apresentadas com tantos super-poderes ou com as portas do mundo quântico abertas diante de si. Não apenas do ponto de vista do decepcionante design de produção – basta comparar com a psicodelia de “Doutor Estranho” -, como também do emocional, e recorde que, ao menos, o antecessor delineava, com certo ar de sacrifício, o mergulho heróico de Scott Lang… ainda que isto durasse menos de 1 minuto.
Ainda assim, “Homem-Formiga e a Vespa” entretém e preenche, com segurança, a agenda da Marvel antes de retornar ao que esta pretende. É como um algodão doce que desaparece no ar mais rápido do que o açúcar corrói nossos dentes, embora ainda consigamos lembrar, com certo sorriso no rosto, a sensação de doçura que nos proporcionou.
P. S.: Após a animação dos créditos finais, há uma cena de vital importância. A outra, ao término dos créditos, é das mais irrelevantes que já vi, salvo se a visão de uma formiga gigante tocando bateria tenha um significado que minha mente diminuta não captou.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.