A quarta parceria entre o diretor Peter Berg e Mark Wahlberg (depois de O Grande Herói, Horizonte Profundo e O Dia do Atentado) atualiza a premissa enxuta de 16 Quadras para o cenário geopolítico contemporâneo. Se naquela produção de 2006, o policial alcoólatra interpretado por Bruce Willis precisava escoltar uma testemunha para depor contra criminosos que tentavam assassiná-la, neste a missão cabe ao agente secreto James Silva (Wahlberg) e a equipe tática que coordena. O percurso também aumentou significativamente, bem como os perigos, um reflexo do modelo de guerra invisível adotado pelas potências mundiais.
Sendo assim, a premissa enxuta do roteiro da estreante Lea Carpenter é explorada satisfatoriamente, sem perder o contato com a objetividade e a contemporaneidade que a ação requer (o ciberterrorismo russo). Contudo, a roteirista comete erros primários que acabam entregando respostas antecipadas ao público: a frase sussurrada por um agente russo antes de morrer (“Vocês estão cometendo um erro”) é a pista para que o espectador desconfie que será tapeado em algum momento (e será!); já a forma com que a trama explora os personagens também entrega quais deles são, digamos, descartáveis. Não falha nunca: conhecer o menor aspecto da vida pessoal (James Silva sofre de alguma doença psíquica, extrapolada pela atuação divertidamente pilhada de Wahlberg) ou familiar (Alice encara um divórcio) torna os personagens respectivos mais importantes do que todos os demais soldados.
Inclusive a estrutura da narrativa, em que James Silva confidencia, em retrospecto, tudo o que ocorreu, ajuda a diluir a surpresa da trama sem contribuir em nada com esta. Ora, se o coordenador da missão (não o líder, papel de John Malkovich, naquele tipo de atuação reciclada que não lhe exige o menor esforço em troca do salário) é quem presta depoimento, podemos extrair diversas conclusões, por exemplo, que a missão enfrentou contratempos e, quiçá, não foi bem sucedida (há mais respostas a serem obtidas desta decisão narrativa, porém se eu começar a citar todas, revelarei spoilers).
Entretanto, é no quesito ação que a narrativa decepciona mesmo, e desde Battleship: A Batalha dos Mares (em que se inspirou, claramente, em Michael Bay a frente de Transformers), Peter Berg demonstra não ter a menor ideia em como decupar cenas de ação e permanece repetindo os mesmos erros! Antes, um esclarecimento: decupar é a tarefa de planejar a sequência através de cenas isoladas interligadas por cortes. Nesta atividade, o diretor estabelece a geografia do local, o posicionamento dos personagens e determina como será desenrolado o set piece (as cenas de ação propriamente ditas, a pedra preciosa do gênero) a fim de que possamos usufruí-la ao máximo (o que Missão: Impossível – Efeito Fallout faz divinamente bem, é relevante mencionar), em vez de somente constatar suas consequências na forma de quantos morreram.
Nada disto ocorre aqui. De que adianta escalar Iko Uwais, um dos melhores astros marciais atualmente, se não podemos apreciar seu trabalho? Assim, no lugar da ação fluida, com interrupções minimamente planejadas, Peter Berg oferece fragmentos: um agressor tenta acertar Li com uma seringa, corte. Este desvia, golpeando-o, corte. Outro assassino surge com uma arma não revelada, corte. Um novo contra-ataque, corte. Você entendeu como funciona, não? É como oferecer migalhas ou o farelo do biscoito, em vez de trazê-lo intacto, e ainda que compreenda a eventual dificuldade técnica que existe na coreografia das cenas, nada justifica aproximadamente 50 cortes em cerca de 1 minuto (em determinado momento, cronometrei).
Isso reflete também na montagem tresloucada de Melissa Lawson Cheung e Colby Parker Jr., cujo trabalho ingrato é o de pegar aquelas mesmas migalhas e reconstruir o biscoito, ou, para alterar a analogia, montar um quebra-cabeças visual com milhares de peças movimentadas em fração de segundos. Existem instantes, inclusive, em que não sabemos sequer em qual direção os personagens estão se movimentando e como conseguem se reencontrar em um condomínio de apartamentos labiríntico (onde, aparentemente, habita só uma pequena garotinha).
Apesar da premissa eficiente para um thriller de ação e do conceito de drone ex machina, cujo comodismo tem uma dimensão crítica e moderna que me agrada, 22 Milhas erra por não ser o filme de gênero que poderia ser. Para isto, nem precisaria mudar os set pieces planejados no roteiro, só trocar o diretor para um que entendesse que filme de ação bom é aquele em que compreendemos o que está posto na tela, em vez de ficarmos mareados e enjoados.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “22 Milhas”
O filme é bem inteligente, agora soa para mim, também, como uma mensagem muito clara do poderio asiático oriental, com o dedo da inteligência russa, os dois maiores aliados da atualidade na guerra comercial e armamentista contra os EUA e, que nesse primeiro embate, parecem sobrepujar a potência americana.
Curiosidades:
– O filme foi feito na Colômbia porque a região da Ásia onde ele se passa era muito perigosa para se filmar. Ironicamente, filmes americanos que se passam na Colômbia geralmente são feitos no México pela periculosidade do país. E como a ironia não bastasse, atualmente filmes no México são filmados nos EUA ou em países da América do Sul, pois a região está se tornando cada vez mais perigosa por causa da guerra do tráfico.
– O diretor Peter Berg, como sempre, faz uma participação especial como o ex marido de uma personagem e aparece na tela de um smartphone.
The Mile 22 é como esperado um filme cheio de ação, é rápido, tem um enredo decente, é um pouco realista, (se você comparar com os gostos de outros filmes de ação recentes, digamos, Skyscraper)
A ação é muito boa, agora a trama e o roteiro não eram tão bons, especialmente o personagem de Wahlberg. Se eles vão fazer uma sequela … tudo o que tenho a dizer é: Calma, Wahlberg …
A estrela do filme é o personagem Iko Uwais, com incríveis cenas de luta com talvez muitos ângulos de mudança rápida, então você não pode seguir exatamente o que está acontecendo. Cenas de ação foram quase decentes, mas o enredo geral foi tão mal aproveitado.
Peter Berg constrói alguma intensidade que mantém seu coração bombeando em tão pouco tempo com o filme. Ele foi ótimo em Lone Survivor, Deepwater Horizon e Patriots Day. Mile 22 não é um grande filme emocionante pois foi mal desenvolvido.