A história de como um artista consolidado, atormentado pelo fantasma do alcoolismo, esbarra no talento de uma desconhecida, impulsionando-a ao estrelato enquanto amarga seu declínio é tão cinematográfica que a versão dirigida, co-escrita e estrelada por Bradley Cooper já é a quarta refilmagem oficial, desde que Lowell Sherman descobriu a redenção ao conhecer a garçonete Constance Bennett em Hollywood (1932). De lá para cá, Fredic March e Janet Gaynor (37), James Mason e Judy Garland (54) e Kris Kristofferson e Barbra Streisand (76) reviveram o romance atemporal sob o mesmo título, Nasce Uma Estrela, e emocionaram plateias e disputaram prêmios.
Não será diferente com a estreia de Lady Gaga como protagonista em um longa-metragem (a cantora figurou antes em Sin City: A Dama Fatal e Machete Mata ), desde logo o franco favorito para o prêmio de melhor canção original, além de, por ser um típico crowd pleaser, com vocação para ser tanto sucesso de público quanto empolgar a crítica, o forte candidato a numerosas indicações ao Oscar.
E a narrativa de Bradley Cooper tem semelhanças com a versão da década de setenta (na era da Nova Hollywood), em particular na maneira com que a câmera estabelece uma relação bastante íntima e próxima com Jackson Maine (Cooper) e Ally (Gaga). É o feijão com arroz gourmet do diretor de fotografia Matthew Libatique, cuja câmera segue o movimento dos personagens por sobre seus ombros, penetra em sua vida particular, enquanto aparenta estar agitada e irrequieta ao lado de Jackson e fascinada, a ponto de permanecer estática, diante de Ally, estabelecendo com isto a marca visual da narrativa que transpassa também a construção dos personagens.
Se Jackson aparenta ser um sujeito com a carga pesada e cansado, ao mesmo tempo em que não esconde a alegria que a música (e o amor) de Ally despertam, a garota é a mocinha ingênua do cinema clássico, com o diferencial de saber esbofetear a cara de marmanjos quando a situação exigir. E um dos problemas do roteiro co-escrito por Eric Roth (Forrest Gump e O Informante), Will Fetters (Um Homem de Sorte e O Melhor de Mim) e Cooper está em tratá-la como uma personagem bidimensional, sem maiores nuances e contornos dramáticas e que permanece remando na direção da correnteza, mas ele, tridimensionalmente. Note que são suas ambiguidades o que a narrativa canta de melhor: a maneira com que se decepciona ao descobrir que Ally tornou-se um produto do mercado musical, não a cantora autêntica que houvera conhecido, revela ainda certo pedantismo contra a cultura de massa; já o ciúme que sente ao vê-la escalar rumo ao topo, logo é riscado do rosto com um gesto brincalhão e que mascara algo quanto um tanto humilhante (esfregar uma torta em seu rosto).
A trama ainda decepciona ao saltar etapas que poderiam ser importantes para estabelecer a dinâmica do relacionamento do casal, e quando menos esperamos, Ally é a artista revelação do ano e o bem-sucedido Jackson desaparece dos palcos, como fogo de palha, dentro da garrafa de gim. A sensação é a de que parte significativa da narrativa foi deixada na sala de montagem por Jay Cassidy (Trapaça, O Lado Bom da Vida), o que explicaria a superficialidade com que o alcoolismo é abordado, a ponto de existirem momentos de sobriedade duradoura intercalados com outros, de intenso vício, sem que Ally aja ativamente e ajude Jackson da forma como for (nenhuma informação há neste sentido, tampouco é o caso de o cantor guardar segredos, por tratar sua vida como o livro aberto que é desde o princípio). Em menor grau, a relação com o irmão mais velho, interpretado com o carisma habitual de Sam Elliott (com direito a um Oscar moment), também é rasa. Não emocionalmente, e sim funcionalmente, e quem não estranhou vê-lo no backstage de uma importante premiação assessorando o irmão após tudo por que passaram?
A maioria das deficiências do roteiro é compensada, contudo, pela direção intimista de Bradley Cooper: sentimental sem ser piegas, romântica, com a dose controlada de cafonice. Um amplificador para seu talento dramático, pois reserva os instantes mais dramáticos para si próprio, e para a voz de Lady Gaga, que impressiona a cada nota, atingindo o ápice na performance arrepiante diante de um estádio lotado. A respeito dela, Bradley ainda é astuto ao reconhecer sua inexperiência e contorná-la com a direção relaxada e diálogos naturais, permitindo-lhe que expresse suas emoções com contundência em frente ao microfone. A propósito, é no mínimo curioso assistir a Gaga revisitar e reinterpretar momentos seminais por que certamente já passou no começo da carreira, conferindo-lhes, até certo nível, toques autobiográficos.
No final das contas, Nasce Uma Estrela prospera sob a tocante trilha incidental (não confundir com a trilha sonora, esta totalmente ausente) e a química entre Bradley Cooper e Lady Gaga. E, por mais que você tenha assistido a todas as versões anteriores, ainda assim se emocionará com a forma poética com que Jackson presenteia a amada, inspirando-a a reencontrar as palavras a dizer com o dom que lhe foi dado.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.