Depois de vencer 2 Oscars por Gravidade em 2013, o diretor mexicano Alfonso Cuarón (de Filhos da Esperança e Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban) certamente recebeu propostas inumeráveis para comandar produções de grandes estúdios. Porém optou por trilhar o caminho contrário e, com baixíssimo orçamento, abriu o baú de memórias para criar uma narrativa autobiográfica. E é emocionante encontrá-lo de volta ao bairro de Roma, na Cidade do México, nesta produção da Netflix que, além de vencer o Leão de Ouro em Veneza (um dos três prêmios mais importantes dos Festivais), é também a franco-favorita para vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Quem sabe até conquistar mais 5 indicações a Cuarón: Filme, Direção, Roteiro, Montagem e Fotografia.
O roteiro, que escreveu, acompanha a rotina da empregada doméstica indígena Cléo (Aparício, por favor, que seja indicada ao prêmio de Atriz) dentro do lar chefiado por Sofia (Tavira), onde também moram seus quatro filhos. Neste cenário, o primeiro ato retrata as tarefas de Cléo, como buscar o filho caçula na escola, acordá-los ou pô-los para dormir, manter os cômodos arrumados e limpar a garagem, mantendo a aura mística típica da casa grande de “pessoa da família”, apesar de estar às margens. É fácil perceber isto enquanto assiste à televisão com todos, mas, na verdade, está somente de prontidão no aguardo para servi-los. A rotina tampouco é modificada após descobrir estar grávida, momento em que conta com o suporte de Sofia, que também enfrenta problemas particulares.
É que seu marido, cujo rosto vemos apenas brevemente, não cabe naquele lar, assim como seu Galaxy na garagem. Este processo de separação naturalmente tem reflexo em Sofia, que chega a propor que os filhos escrevam cartas ao pai como forma de chantagem emocional, e respinga em Cléo, testemunha ocular dos rompantes da empregadora. A trajetória de ambas mulheres é retratada por Cuarón com a simplicidade ínsita aos dramas intensos, evitando recorrer à cafonice e ao sentimentalismo, em geral o porto-seguro de diretos menos confiantes. Só ajuda o fato de Cuarón, ao mesmo tempo em que narra a história, ainda estar redescobrindo seu passado e a personalidade de familiares queridos.
Faz isso sem se abster de comentar a respeito da situação do México, presidido por Luís Echeverría e que acabara de sediar a Copa do Mundo de 1970, durante um período marcado por desapropriação das terras indígenas e entrega aos latifundiários e fazendeiros, de crise de abastecimento e saneamento básico (repare a frequência em que vemos caminhões-pipa ou o estado da cidade interiorana visitada por Cléo) e de conflitos sociais, em que milícias armadas assassinam, covardemente, um manifestante (em uma sequência executada com a maestria habitual de Cuarón). A propósito, o diretor acerta tanto no aspecto macro, de modo a produzir cenas que já nasceram clássicas (refiro-me ao parto e àquela ambientada na praia), quanto no micro: observe que Cléo limpa o telefone no avental antes de passá-lo à Sofia, um gesto discreto mas revelador do abismo social que as separa. É também sinal da direção de atores excepcional, além do talento instintivo de Yalitza Aparício, que incorpora o auto-menosprezo sentido por quem não tem vergonha em falar que preferiria estar morta.
Assim, é conveniente que Cuarón, agora na função de diretor de fotografia, opte pelo preto e branco, pois além de ser conveniente em retratar o tempo pretérito, aguça a melancolia de uma narrativa em que as mulheres enfrentam as consequências das decisões dos homens (o abandono familiar, de modo geral) ou em que a classe social inferior não goza sequer o direito de usufruir o sofrimento como deseja, sujeitando-se ao convite (leia-se ordem) de quem está em posição privilegiada. Uma situação que não merece cores e tem, como efeito prático, o incômodo visual causado em ver frutas, legumes e roupas sem um dos atributos que os definem. E Cuarón não resiste em inserir um momento em que uma personagem afirma estar bonito o clima do lado de fora apenas para cortar, na seguinte, à janela marejada pela chuva.
Com tudo isso, Roma ainda é afiado na crítica social, ao retratar, no plano aberto do topo dos edifícios da vizinhança, uma dezena de empregadas domésticas na idêntica situação de Cléo, bem humorado, como ao exibir um homem nu impressionando a parceira com golpes de samurai, e simbólico, tendo como signo frequente os aviões que sobrevoam o bairro. É a ironia ilustrativa de quem, por imposição da desigualdade social, nasceu para permanecer imobilizada na camada social em que se encontra, servindo aos outros, alegrando-se ou se entristecendo por estes e fazendo de sua vida um testemunho diário de sua dedicação.
E somente por causa da direção delicada, sensível e humana de Alfonso Cuarón, em um de seus melhores trabalhos, é que podemos acreditar, com o perdão da ingenuidade, que Cléo integra aquele núcleo familiar além da relação de trabalho, e não está apenas esperando ser “empalhada” na memória destes, tal como todos os animais de estimação em certo instante exibidos.
Assim, tal como Que Horas Ela Volta, Roma é uma obra intimista para refletir sobre o valor que damos àqueles que zelam e se dedicam por nós como se fôssemos de seu próprio sangue. A homenagem eternizada em arte é mais do que merecida, portanto.
Crítica escrita durante a cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Roma tem previsão de estreia, na Netflix, em 14 de dezembro de 2018.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Roma”
Sem cabimento esse filme não ser disponível em todos os cinemas do país! Obra de arte.
Cara, impressionante… Como que ele coreografou aquilo tudo? É incrível. A forma como tudo vai acontecendo. A forma como vai sendo posto na tela. A forma como o filme vai se comunicando e a história sendo contada. E aquelas cenas surreais como da praia e tudo que antecede o parto e o próprio parto, ta doido kk. Todas as figuras de linguagens e as simbologias (achei ótima aquela em que a partida do marido é marcada por uma marcha musical na rua. E no final quando eles voltam da praia e que as crianças agora sabem da separação e assim se inicia uma nova fase na vida deles, a mesma marcha reaparece rs incrível). Como eu amei. E sua crítica me serviu pra reforçar muitas coisas. Muito bonita, de verdade