Existe tanta coisa errada em Venom que seria até apressado de minha parte começar discutindo justo sobre a ambivalência da narrativa, que, ironicamente, parece produzida à imagem e semelhança de seu protagonista: Eddie Brock, um repórter sensacionalista contaminado por um simbionte alienígena, em um casamento que sugere ser a releitura de O Médico e o Monstro com a diferença de que aqui Doutor Jekyll e Senhor Hyde não competem pelo mesmo corpo, mas compartilham-no para se tornarem ‘eus’ melhores do que eram sozinhos. Certamente não faltam oportunidades para que o conceito do personagem, cujo malfadado debute ocorreu em Homem-Aranha 3, rendesse uma atraente produção que subvertesse, ou ao menos acrescentasse ao subgênero um tempero picante, mas não é o caso.
Escrito por Jeff Pinkner (A Torre Negra, O Espetacular Homem-Aranha 2), Scott Rosenberg (60 Segundos, Canguru Jack) e Kelly Marcel (Cinquenta Tons de Cinza), o roteiro situa Eddie Brock em São Francisco, portanto na costa oposta de Nova Iorque, onde está o Homem-Aranha, e oferece-lhe a vida que qualquer mortal pediu aos céus: noivo da bela e bem sucedida Anne (Williams), profissional conceituado a tirar pelo andar do jornal ao qual trabalha e no corpo do durão Tom Hardy! Entretanto, tudo isto desmorona em represália à entrevista feita com Carlton Dake (Ahmed), dono de uma mega-corporação que secretamente trouxe do espaço alienígenas e realiza experimentos de compatibilização com mendigos em troca de cachê de que não poderão usufruir. É durante a investigação deste crime que o agora desiludido, desacreditado, solteiro e perdedor Eddie esbarrará com o simbionte Venom.
Claro que o relacionamento entre ambos não será fácil, e demora para que Eddie entenda por que existe uma voz dentro da sua cabeça gritando por comida e suas recém descobertas habilidades que o protegem de asseclas de Carlton, que desejam sua ‘propriedade’ alienígena de volta. Mas enquanto os bandidos falham no intento e Eddie submete-se a exames médicos para descobrir o que há de errado consigo, um simbionte sobrevivente caminha por toda a Malásia durante seis meses até chegar à São Francisco (sem que isto desperte o menor sinal de alerta). Porém, não é o maior furo da narrativa, que apela para todas as soluções fáceis que puder encontrar em direção ao clímax, igualmente mal construído e resolvido.
A esse respeito, nada chega a ser mais decepcionante do que a afobação narrativa naquilo que deveria ser seu ponto mais forte: a relação entre Eddie e Venom. É o único elemento aceitável, especialmente após Tom Hardy abrir mão da atuação ao estilo “o que diachos estou fazendo aqui” e abraçar o modo “dane-se, vou começar a me divertir” e Venom revelar o senso de humor ácido com que seu hospedeiro precisará aprender a lidar a fim de permanecer vivo. A cena em que Eddie resolve usar o elevador ao invés do método sugerido pelo simbionte está entre as mais eficazes neste sentido. Porém, por mais que aprecie o humor que a dupla proporciona, a sensação é de que os roteiristas estão sendo levados pela correnteza até descobrirem que devem estabelecer uma boa motivação para a simbiose e o recém descoberto desejo de permanência daquele na Terra.
Com isso, a trama também deixa na mão Michelle Williams e Riz Ahmed, com a promessa de que o momento de empoderamento (destinado a ela) e de messianismo (a ele) seria o bastante para contornar a unidimensionalidade de seus personagens… não é. Também é frustrante a tentativa de estabelecer um arco de anti-herói quando se repete as mesmas etapas de iniciação dos super-heróis, com direito, inclusive, à cena em que Venom admira a cidade à noite sobre um arranha-céu. É o mal que sofria Esquadrão Suicida, e lembramos como isto acabou, já que, por mais que seus personagens sejam amorais ou vilanescos, acabam agindo como heróis enfrentando um mal maior.
Tudo piora porque a censura norte-americana, PG-13, higieniza o personagem a ponto de não haver nem uma gota de sangue qualquer, mesmo que Venom aprecie abocanhar cabeça e membros de seus adversários. Aliás, a atenuação da violência ínsita do alienígena e da canalhice de Eddie Brock tornam-nos em versões pálidas dos personagens das histórias em quadrinhos, e note que o ato mais censurável de Eddie (invadir o computador de Anne) é moralmente aceito por peitar uma corporação criminosa.
Poderia ser diferente, sobretudo porque o diretor Ruben Fleischer (Zumbilândia) nitidamente compreendeu que o conceito de Venom amoldaria-se perfeitamente ao body horror (ao estilo A Mosca) com investimento forte no humor negro. Porém, a versão do diretor é distante daquela que a Sony vislumbrou, e a narrativa sofre com as alternâncias de estilo e tom, como se tivesse duas cabeças controlando o mesmo corpo, daí a ambivalência que citei no parágrafo introdutório, até o ponto em que a produtora vence a queda de braço (claro).
Para piorar, Ruben Fleischer não é hábil em encenar cenas de ação eficientes e envolventes, culpa que partilha com o roteiro, neste caso por estabelecer set pieces reciclados e incapazes de aproveitar as habilidades do simbionte. Nem a fotografia do talentoso Matthew Libatique (colaborador habitual de Darren Aronofsky, em trabalhos como Cisne Negro e A Fonte da Vida), tampouco a trilha sonora de Ludwig Göransson (Pantera Negra) consegue ser motivo bastante para assistir a (mais uma) versão equivocada sobre o personagem, no típico caso da produção que tenta surfar na crista da onda do subgênero dos super-heróis, e enriquecer as custas do espectador, sem oferecer nada em retorno.
P. S. 1 O 3D é descartável, ainda mais pelo fato de a narrativa ser, praticamente, noturna.
P. S. 2 Há duas cenas adicionais, uma logo após as artes iniciais dos créditos finais e outra, a seu término.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.