Em estreia na direção, o ator Paul Dano (Okja, Sangue Negro e Pequena Miss Sunshine) desvia das tentações postas em seu caminho: em vez de soluções rebuscadas, a simplicidade em contar, visualmente, uma história universal. Já a fim de evitar chamar a atenção para si próprio e deixar a trama conversar com o espectador, mantém-se exclusivamente detrás das câmeras. São sinais de que Paul Dano entende, especialmente, do que não se trata a função de contador de histórias, e com este Vida Selvagem obtém um resultado bastante acima da média.
O roteiro, co-escrito com Zoe Kazan (Ruby Sparks – A Namorada Perfeita), viaja à crise econômica dos anos 60 para narrar a história da família Brinson. O pai, Jerry (Gyllenhaal), após ser demitido do emprego de treinador de golfe por ser bastante sociável, decide ser voluntário da equipe de combate a incêndios florestais. A mãe, Jeanette (Mulligan), de cujo nome não gosta por associar a garçonetes, aceita emprego de meio período para sustentar a família no desemprego e posterior ausência do marido. É quando conhece o ricaço Warren Miller (Camp, extraordinário), com quem inicia um relacionamento extraconjugal. No meio deles, o filho, Joe (Oxenbould, de A Visita), serve como observador (e nosso ponto de vista) da ruína daquela família.
Em termos de narrativa, Paul Dano opta por soluções elegantes que afirmam muito sobre aquele casal. Repare que, afora raras exceções (bem no início, ao lavarem a louça; ou bem depois, em uma troca de farpas), Jerry e Jeanette não compartilham o mesmo quadro, como se a separação do casal já estivesse anunciada desde cedo. A propósito, é significativo que mal vemos Jerry enquanto narra à esposa sobre sua demissão, como se tivesse vergonha de mostrar, para nós, seu rosto. Neste caso, a câmera permanece apenas em Jeanette, e apenas depois de esta aceitar a explicação do marido que o enxergamos de novo, com um sorriso amarelo estampado no rosto.
Ao mesmo tempo, a mise en scène permite que antecipemos o momento de demissão de Jerry não apenas pelos fatos pretéritos, como também pela maneira hesitante que seu chefe estende a mão ao ser apresentado a Joe. Enquanto isso, a distância e os obstáculos entre Jeannette e a secretaria a quem indaga a respeito de uma vaga de emprego é a pista que precisávamos para prever que a busca naquele momento seria infrutífera.
Tão sofisticados quanto essas decisões, os diálogos são competentes em afirmar muito com pouco. “Sinto que preciso acordar. Mas não sei do quê. Nem para quê” é o questionamento retórico que Jeannette confidencia a Joe, antes de explicar-lhe por que batizaram-no com este nome (“Qualquer pessoa pode tê-lo”, enfatizando a universalidade da trama a partir dos infinitos Joes). Mais a frente, Jeannette refere-se a Jerry não pelo nome próprio ou como marido, e sim como o pai de Joe, confirmando o distanciamento do casal. O roteiro ainda evita meias palavras e conflitos batidos, apostando na franqueza com que a família dialoga entre si.
E ainda bem que Paul Dano não precisa ensinar sermão a vigário em se tratando de Carey Mulligan e Jake Gyllenhaal, atores indicados ao Oscar. Este é capaz de retratar a frustração e o orgulho de Jerry apenas com a linguagem corporal, não precisando abusar de excessos de alcoolismo para tanto (embora desconfiemos que o pai encontra no vício certo alívio). Já Carey ilustra o abalo emocional de Jeannette, através de seu comportamento impulsivo e, por vezes, niilista, culpa da sociedade conservadora que não a preparou a exercer outro papel senão cuidar do lar. Por fim, Oxenbould passeia por grande parte da narrativa apenas observando e sofrendo calado, para ter o vazão sentimental no terceiro ato, onde põe em prática o ofício que aprendeu de fotografia para fins de ter o mínimo registro de felicidade de seus pais.
É um drama que foge, como o diabo da cruz, da pieguice, concentrando-se no amargor e na casca grossa que criamos com o tempo, sendo bem sucedido nesta proposta. A decisão mais acertada de Paul Dano, mais um jovem cineasta cujo futuro reserva bons frutos.
Crítica publicada durante a cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para conferir locais e horários de exibição, clique no link.
Sem previsão de estreia no Brasil.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.