Imaginem o seguinte: você é M. Night Shyamalan, um desconhecido cineasta indiano que acabara de dirigir um dos mais bem-sucedidos filmes da história na época, O Sexto Sentido (1999), ainda por cima de terror, estraçalhando recordes de bilheteria e também conquistando 6 indicações ao Oscar (duas para você, na categoria de direção e roteiro). Chegaram, inclusive, a apelidá-lo de “o novo Spielberg ou Hitchcock”. Conseguem sentir a pressão criada em torno de seu trabalho seguinte, Corpo Fechado (2000), e a expectativa ante a aguardada reviravolta que jamais aconteceu, ao menos não da forma que a esmagadora maioria de espectadores ansiava? Não me parece justo que o diretor tenha amargado o gosto do insucesso apenas por comparação, especialmente porque o drama de super-heróis e vilões não fez mal nas bilheterias (U$ 248 milhões contra o orçamento de U$ 75 mi), nem na crítica (69% de aprovação no agregador Rotten Tomatoes).
Nesse cenário, demoraram 19 anos e uma carreira com mais baixos do que altos, alguns perigosamente próximos do fundo do poço (caso de Fim dos Tempos, A Dama na Água ou Depois da Terra) para que o diretor finalmente implementasse a conclusão da trilogia que, alegadamente, planejava construir depois de introduzir David Dunn (Willis) e Elijah Price (Jackson) como instâncias de histórias em quadrinhos no mundo real. E a pergunta é, valeu a pena toda a espera?
Minha resposta é sim, embora a qualidade de Vidro esteja mais atrelada ao que pretende em debater do que necessariamente ao que consegue fazer. O roteiro reapresenta David Dunn, agora sob a alcunha de O Vigilante, um justiceiro que permanece não identificado e que persegue à Horda que habita no corpo de Kevin (McAvoy, com a oportunidade de dar vida às demais personalidades, além das apresentadas Fragmentado). Quando ambos se enfrentam em um depósito abandonado, são presos pela polícia e mandados para um hospital psiquiátrico sob os cuidados da Dra. Ellie Staple (Paulson), que defende que eles não tenham super-poderes, somente delírios de grandeza. Na instituição também está Elijah, ou o Sr. Glass, em estado catatônico (embora saibamos tratar-se de uma encenação). Em meio a sessões de terapia, individual ou conjunta, Shyamalan recorre a coadjuvantes ligados ao trio para conferir o tônus que falta à trama: Casey (Taylor-Joy), a sobrevivente de Kevin, Josephn (Clark), filho de David, e a Sra. Price (Woodard, atriz que é 8 anos mais nova do que Samuel L. Jackson apesar de interpretar sua mãe, naquelas acidentes escandalosos da equipe de casting).
Mal estruturado, o roteiro desperdiça tempo precioso em frivolidades, em vez de investir na construção do caminho que nos conduzirá ao terceiro ato. Em uma sequência, um enfermeiro da instituição liga e desliga as luzes no quarto que contem Kevin sem motivo aparente, senão para James McAvoy exibir o alcance de sua interpretação. Podemos apreciar o talento do ator e a execução do travelling circular planejado por Shyamalan, ao mesmo tempo em que reconhecemos que a sequência não acrescenta bulhufas à trama. Isso sem contar a redundância do texto, que repete quatro vezes que o hospital psiquiátrico é como um local para quem pensa ter saído de gibis, e as homenagens a seu universo (a participação especial do diretor apenas ressoará para quem recorda Corpo Fechado, da mesma maneira como na cena em que Joseph encara um sujeito fazendo supino).
Por outro lado, se o roteiro tem problemas provocados pela autoindulgência de seu autor, a direção é segura e confiante de si, narrando sequências convencionais do subgênero de um modo atípico: quando Kevin enfrenta seguranças no corredor do porão, a câmera desvia seu foco para Elijah, o arquiteto daquela situação, deixando a ação ao segundo plano. Similarmente, uma troca de sopapos é enquadrada da janelinha do furgão onde estão escondidas duas enfermeiras, deslocando o ponto de vista para quem, de fato, poderá sofrer as consequências daquele confronto. Shyamalan também evita vulgarizar a estética plano e contra-plano, habitualmente empregada para retratar diálogos (quando a câmera corta de um interlocutor para o outro, assim que este toma a palavra), optando por soluções melhor idealizadas que favorecem a reação, não a ação – e não é incomum enumerar cenas em que a câmera permanece segundos a mais no rosto do ouvinte.
A esse respeito, é interessante observar o impacto que a psicologia da Dra. Staple tem sobre David e Kevin, forçando-os a duvidar de quem são, uma força contrária a do Sr. Glass, que pretende exatamente o oposto. E se o roteiro parece inchado nos primeiros 45 minutos, é porque Shyamalan tenta tornar crível os princípios que norteiam aquela personagem e o porquê de sua recusa em apelar à violência como a solução inicial, alicerçados na atuação competente de Sarah Paulson. E se Bruce Willis não tem bastante com o que trabalhar, trocando a melancolia de David pela apatia e desmotivação que o contaminaram nesta fase da carreira, James McAvoy e Samuel L. Jackson esforçam-se para estabelecer motivos, por mais absurdos que pareçam, para suas ações. Uma constatação curiosa se lembrarmos que vilões tendem a ser mais interessantes do que heróis, em regra.
Já a fotografia de Mike Gioulakis pinta o universo narrativo com as cores definidoras de cada personagem (verde, amarelo e roxo), enfatizando o aspecto fantástico e coloridos das HQs na cartela de cores, enquanto o design de produção de Chris Trujillo acerta ao invocar as mesmas cores em momentos capitais, como o roxo do brinquedo no parque de diversões onde Elijah brinca na infância ou as cores que separam os gibis em uma lojinha especializada. Até o pingente cintilante no pescoço do personagem-título é menos tosco se imaginarmos a maneira com que este enxerga a realidade, como parte integrante dos gibis que tanto aprecia.
E apesar de Vidro não sobreviver às expectativas criadas durante a narrativa, falhando no trabalho de inserir pistas que nos levassem, com naturalidade, à revelação do terceiro ato – que do jeito que está parece a forma mais desastrada de tentar amarrar as pontas dos três filmes -, o carinho que M. Night Shyamalan sente por aqueles personagens e seu universo compensa os pontos fracos da narrativa. Um bálsamo para quem não suporta mais assistir às aventuras repetidas dos heróis da Marvel ou DC.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.