Dentre todas as refilmagens dos clássicos da Disney, O Rei Leão era a aposta mais certa em retorno financeiro, porém a mais incerta em qualidade artística. Ao lado de A Bela e a Fera, era a que tinha menor razão de existir, porque os originais são obras-primas onde não havia a mínima margem para manobra, como houve na recriação de Dumbo, Mogli e Aladin. Para piorar, enquanto a história da camponesa francesa apaixonada por literatura acrescentou um a mais na história, cuja (ir)relevância pode ser discutida e questionada, a trajetória de Simba optou por preservar a fidelidade à trama, com exceção da canção inédita de Beyoncé que mal ocupa trinta segundos na narrativa, e à temática política e humana no amadurecimento e responsabilidade por quem se é, a ponto de sua dispensabilidade ser mais evidente.
Contudo, uma parte do prazer cinematográfico também envolve o fascínio em testemunhar a evolução da tecnologia e como esta pode auxiliar na arte de contar histórias. Logo, similar ao fraquinho O Cantor de Jazz (o primeiro filme falado da história, de 1927), a re-visitação às pradarias da Terra do Reino ao menos proporciona um colosso técnico impossível de não nos deixar de queixo caído a cada close no semblante comunicativo de Rafiki, por exemplo, ou na humanização dos olhares. Cada tomada e sequência desta animação fotorrealista, não um live-action como anunciado (não há animais, cenários nem atores atuando através da captura de performance, somente avançados e detalhados efeitos computadorizados), é feita para impressionar o espectador, encher seus olhos e obrigá-lo a questionar onde terminará a fronteira que separa o artifício do real.
O próprio conceito fotorrealista, o colete salva-vidas da narrativa, é seu ponto fraco. Com a trama inalterada, e não teria por que ser diferente, o trabalho do diretor Jon Favreau é o de reproduzir o original em tudo que pode através de composições preguiçosamente idênticas, como a apresentação do recém-nascido Simba, com o realismo que subtrai a expressividade existente na estilização da animação original. É o oposto, se refletirmos, dos documentários adoráveis e cativantes do selo Disney Nature, como O Reino dos Primatas, em que a arte envolve buscar a prosa lúdica fictícia no mundo animal: no exemplo citado, a partir de uma trama inspirada em Romeu & Julieta. Aqui em O Rei Leão, Favreau precisa inventar uma maneira de inserir animais que somente parecem reais na adaptação livre de outro clássico de William Shakespeare, Hamlet. Contudo, embora leões, hienas, javali, suricato e restante da fauna falem e cantem, não expressam a mesma emoção que fizeram antes justo por serem reais em demasia.
É como comentou o crítico norte-americano Scott Renshaw, “os animais parecem reais, mas não estão vivos”. Isto fica evidente ao analisarmos Simba: no lugar do leãozinho com o semblante travesso e ansioso em provar sua coragem e valor, temos só o rosto de um leão, indistinguível de outros filhotes. Quando Simba amadurece, sua essência também evapora, pois onde existia um personagem que sorria após encharcar a juba e gingava ao som de Hakuna Matata, agora há somente um avatar convincente como seus pares livres no habitat natural, porém sem a vivacidade que um dia apresentava. A mesma constatação aplica-se às hienas, que perderam as características que as individualizam no original, em troca de serem mais ameaçadoras. Por esta razão, enquanto na animação a responsabilidade por conferir alma cabia aos animadores e à voz original, aqui cabe injusta e exclusivamente a estes.
Ao lado de atores competentes, como James Earl Jones, reprisando seu papel como Mufasa, Seth Rogen, que é mais Pumba do que o próprio javali, John Oliver, um achado precioso como Zazu, e Beyoncé, que confere mais energia e vibração à Nala do que no original, há decepções significativas. A maior delas é Donald Glover, abafado como uma versão insossa de Simba. Já Chiwetel Ejiofor acentua o grau de crueldade de Scar, em troca da malícia e sarcasmo que havia na voz britânica e compassada de Jeremy Irons, tornando-o, entretanto, mais genérico e trivial do que deveria ser. Sua canção, Be Prepared,um dos pontos altos do original, agora é meramente uma parada obrigatória que a narrativa deve fazer sem saber ao certo por quê.
Este argumento pode ser aplicado às canções clássicas que, com exceção de Circle of Life – impactante como há 25 anos -, pontuam sequências pouco inspiradas. Como a dissimulação de Simba e Nala entre a fauna local em I Can’t Wait to be King, um instante apático, que sequer relembra a diversão existente no original senão no tom de voz desesperado de Zazu. Aliás, o que diferencia o semblante do príncipe nesta sequência e quando é emparedado por hienas é meramente a situação, pois, de novo, a camada de realismo exige, como pedágio, a remoção das emoções que transformavam animais em personagens. Sem isto, Hakuna Matata e Can You Feel the Love Tonight terminam sendo somente covers bem cantados e aptos a entusiasmar o espectador graças à nostalgia inspirada, não aos méritos narrativos.
É isto o que O Rei Leão tem a proporcionar, nostalgia. Uma saudade do original, que, ainda por cima, não enrolava como fazem os 30 minutos adicionais desta versão, consequência da modificação do ritmo interno de cenas que parecem mais longas do que no original. Assim, quando Simba repousa ao lado do já morto Mufasa, a percepção é de que a cena se estende um momento além do necessário.
Ao final, não é a falta de criatividade do confiável Jon Favreau ou decisões improdutivas em comparação às do original, é o conceito do fotorrealismo que condena esta refilmagem a ser somente uma cópia realizada pelo aluno mais rico da turma: ele tem todos os melhores recursos que o dinheiro pode comprar à disposição e certamente encantará nossos olhares com pirotecnia. Só lhe falta o coração, e sem este não existe vida na arte.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.