Os anos 60 do cinema brasileiro assistiram à ascensão dos consagrados Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol), Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas), Anselmo Duarte (O Pagador de Promessas) e tantos mais que souberam explorar as riquezas do sertão nordestino com histórias a respeito das condições árduas a que estão submetidos este povo marginalizado e esquecido pelas políticas públicas da maioria dos governos federais. A eles, agora podemos acrescentar Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, diretores de Bacurau, que não nega as raízes de faroeste sertanejo em que se inspira, ao mesmo tempo em que também se encaixa em uma narrativa cinematográfica contemporânea que aboliu as fronteiras que separavam gêneros e os definiam com clareza.
Escrito pela dupla, Bacurau é melhor mantido debaixo do véu turvo do mistério, para que o público possa explorar as potencialidades do roteiro e seus personagens e surpreender-se com as viradas imprevisíveis de uma história inconformada em ser corriqueira. Pode parecer ser, ao menos a princípio, quando o distrito / cidade que intitula o filme é tomado por uma crise hídrica causada pela ação humana. É quando Teresa (Colen) retorna para velar e enterrar a avó Clementina, respeita por toda a comunidade, e descobrir que Bacurau desapareceu dos mapas da internet. Esquecido, como parte do Nordeste, o que lhe resta para resgatar a memória? Contar além disto seria um pecado cometido contra o espectador, e evitarei fazê-lo em respeito.
Parte do que chama a atenção na narrativa vencedora do Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2019 é a maneira articulada com que Kleber e Juliano conciliam os objetivos de sua narrativa. Por um lado, existe um intenso conteúdo político, verbalizado visualmente. Um caminhão enfrenta poucas e boas na rodovia esburacada que conecta Bacurau a centros mais desenvolvidos. Da janela do carona, Teresa encara uma abandonada escola pública. O mais curioso, porém, é a destinação dada ao posto de saúde mantido por Domingas (Braga): na falta de remédios, vacinas ou mesmo de doenças para tratar, a localidade vira um misto de hotel e motel.
Apesar de tantos problemas por que passa a municipalidade e dos impactos que provocam na comunidade, Kleber e Juliano preferem retratar a comunhão de personagens bem estabelecidos e cujo desenvolvimento, por não ser essencial à narrativa, é deixado a cargo do espectador para preencher as lacunas a partir das pistas deixadas pelo roteiro. Plínio (Rabelo), Acácio ou Pacote (Aquino), Damiano (Francisco), além de Teresa e Domingas, compõem um mosaico rico e heterodoxo, em que características físicas, orientação sexual ou profissão não modifica o modo como são enxergados por seus pares. Na prática, quando unidos, aqueles cidadãos formam um corpo mais complexo do que individualmente jamais sonhariam em ser, o que não quer dizer que haja preterição de características particulares por parte da direção. Basta reparar no tratamento conferido a um matador de aluguel, uma espécie de subcelebridade local como os cangaceiros um dia foram, embora com ressalvas e senões.
A política, no sentido mais amplo, também é debatida de maneira simbólica. Se a presença de uma tecnologia de vigilância contemporânea pareça pitoresca, por que não tosca, seu significado revela que o povo nordestino não é tolo como imaginavam ser os apelidados de “mexicanos brasileiros” ou quem imaginava que o idioma pátrio é o “brasileiro”. É ainda um signo material do universo fantástico, um atributo indispensável da distopia narrativa, evidenciada quando a televisão expõe o que tem acontecido no vale do Anhangabaú. Como este objeto tecnológico, as partes que compõem o organismo de Bacurau desempenham funções que alternam entre as óbvias para as mais alegóricas, e, assim, a escola e o museu viram fortalezas de resistência, como são a educação, cultura e história em face à opressão.
Por falar no museu, é curioso como a recusa de determinados personagens aos convites para visitarem-no revela bastante sobre o comportamento brasileiro a respeito do passado e como este esquecimento premeditado facilita o enraizamento de culturas, que não a nossa, dentro de nosso tecido social e imaginário coletivo. Um comentário, a propósito, destacado com felicidade por uma participante do debate ocorrido ao término da sessão, ao justificar o destino de certo personagem.
Bacurau é uma canção de amor de Kleber e Juliano ao nordeste e à história brasileira, relendo, de forma madura e surpreendente, a colonização até o “daqui a alguns anos”, sem se desapegar do que transforma o cinema nesta arte pulsante e apaixonante: a miscigenação inédita de formas e estilos proporcionada por autores que detêm total controle daquilo que pretendem contar e um desejo enorme de mexer com o imaginário de quem os assiste.
Publicação escrita durante a cobertura do 47º Festival de Gramado
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Bacurau”
Agradecimentos para a compartilhar seus conhecimentos e informações
é realmente valioso e compreensível.