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Missão no Mar Vermelho

Missão no Mar Vermelho

130 minutos

A história real em que é inspirada a trama de Missão no Mar Vermelho é cinematográfica por excelência, disto ninguém dúvida. Durante os anos 80, uma minoria de judeus etíopes era mantida em campos de refugiados no muçulmano Sudão, onde precisava se submeter as leis de Sharia, enquanto enfrentava a opressão do governo local, interessado meramente na quantia que a ONU enviava por refugiado. O que separava este povo oprimido da ‘terra que mana leite e mel’, Jerusalém, era o mesmo mar por que Moisés teria conduzido os hebreus das terras de faraó, e que seria atravessado novamente, agora com ajuda do serviço secreto de Israel, nesta versão contemporânea do êxodo, que substitui as pragas bíblicas por astúcia e o hotel do título original, empregado como fachada para contrabandear pessoas ao país.

Com este argumento nas mãos de roteirista hábil e a direção certa, esta produção disponível na Netflix poderia ser o equivalente no serviço a Argo, mas a impressão ao assisti-la é de que, diferente do vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2013, o melhor ponto de vista para narrá-la não seria a de Ari (Evans) e sua equipe de espiões, e sim dos judeus etíopes e de Kebede (Williams), que pôs sua vida em risco em múltiplas ocasiões para conduzir aqueles ao ponto de resgate. Não é difícil constatar este equívoco no decorrer desta narrativa, mais seduzida pela ilustração do esquema montado – mal aproveitado e desenvolvido inclusive, como justificarei adiante – do que pelas milhares de pessoas resgatadas. Eu compreendo a tentação em contar com Chris Evans, Haley Bennett, Ben Kingsley ou até Greg Kinnear em posições-chave na narrativa, porém não que isto venha de encontro ao retrato do sofrimento e luta da minoria de refugiados.

Bastam 30 minutos para que enxerguemos o problema de foco no roteiro do criador da série Homeland, Gideon Raff, que também dirige, ao apontar os holofotes sobre o protagonista Ari desde o primeiro instante em que o vemos realizando flexões de braço na carroceria de uma caminhonete, enquanto espera uma dúzia de refugiados trazidos por Kebede. Heróico, mas imprudente, esperto e repleto de planos mirabolantes na cartola, embora descontrolado, insubordinado e com problemas familiares (que tomam míseros 2 minutos da narrativa em uma cena embaraçosamente forçada com a filha), Ari é um Capitão América sem escudo ou super-poderes. O que, dada a familiaridade com que Chris Evans desenvolveu este papel na Marvel, não seria ruim caso a narrativa não preferisse enquadrá-lo, de novo, exercitando-se nas grades da prisão e caminhando sem camisa para lá e para cá.

Chega a ser ofensivo que Gideon Raff invista 130 minutos majoritariamente em Ari, por mais altruísta que ele tenha sido, e ignore, no resto do tempo, as consequências de mais de dois milênios que aqueles etíopes aguardaram para regressar à terra prometida – inclusive sonegando do espectador o prazer de testemunhar o retorno. Certo instante, um personagem comenta sobre o genocídio diário com o qual ninguém se importa porque é na África… e nem a direção ao reduzir esta realidade a cenas passageiras, como aquela em que assistimos ao assassinato em massa, cometido pelo típico militar africano do cinema que sorri detrás de dentes brancos sua maldade maniqueísta. E repare como a narrativa melhora sempre que deixa o conforto do resort e viaja aos guetos de refugiados, como ao escutar a súplica da mulher que perdeu pai e marido na caminhada, tem o filho doente e está dias sem comer.

Entretanto, nem a opção narrativa do diretor proporciona o retorno esperado em matéria de engenhosidade e tensão. Após o secretário de defesa narrar em alta e bom som e de forma debochada qual o plano de Ari, no clichê do roteiro que precisa mastigar suas explicações ao espectador com medo de este não haver compreendido, assistimos a uma parte deste só: a que consiste em transportar refugiados do hotel aos barcos-resgate, e isto em uma ocasião. Não acompanhamos o trajeto de Kebede dos guetos ao hotel, nem onde e como Ari esconde os refugiados, muito menos o que acontece no mar vermelho, onde também acontece parte relevante do plano. Em vez de assisti-lo executado na íntegra, só acompanhamos a equipe de espiões atuando como se fossem empreendedores do setor hoteleiro, o que significa que devem cumprir as expectativas dos hóspedes, com aulas de Tai Chi Chuan ou mergulhos no mar. Afora serem momentos descartáveis, também tornam inconstante o tom da narrativa, que varia de uma montagem descontraída e ensolarada a uma sequência intensa e noturna.

Por mais que haja intérpretes talentosos no elenco (Kingsley, Kinnear, Huisman, que nada fazem senão serem eles próprios), Gideon não sabe como retratá-los sem ser através dos estereótipos com que nos são apresentados. Tome Hayley Bennett, uma mulher que não se submete ao assédio sexual de seu colega, revidando violentamente. Ou então Alex Hassell, um franco atirador que por onde anda está comendo algo. Já Alessandro Nivola não escapa de ser apenas a voz da consciência de Ari, aquele que grita ‘não’ para, no instante seguinte, volta atrás. E, apesar de ter ressalvas, confia nas decisões do líder, a ponto de nos provocar espanto quando este lhe pergunta “Vai confiar em mim?”. A vontade é de responder: “Ele confiou em você o filme inteiro”.

Com um clímax cheio de oportunidades para ser angustiante e emocionante, como o de Argo, mas incapaz de alcançar estas qualidades, Missão no Mar Vermelho ainda perde a chance de se despedir do público em boa nota. Estaremos satisfeitos com o resultado, disto tenho certeza, pelo desfecho que a história real proporcionou, não por méritos da narrativa incapaz de transportar o fato à ficção. Ou melhor, deixando este se afogar no mar vermelho das ideias mornas e mal-executadas.

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2 comentários em “Missão no Mar Vermelho”

  1. Andries Viljoen

    Aqui está uma lista de alguns dos filmes inspirados pelas operações do Mossad:

    – “The Red Sea Diving Resort” (2019) –
    Filmado na África do Sul e Namíbia pelo diretor israelense Gideon Raff, o filme conta a história da “Operação Brothers”, realizada pelo Mossad entre 1981 e 1985. Cerca de 7.000 judeus etíopes foram ex-filtrados do Sudão para Israel por agentes da Mossad que montaram o local… um falso resort de mergulho no Mar Vermelho para a operação.

    – “O Anjo” (2018) –
    O diretor israelense Ariel Vromen conta a história de Ashraf Marwan, genro do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser e assessor de seu sucessor Anwar Sadat. Marwan era suspeito de ser um agente duplo que alertou o Mossad para um ataque iminente na véspera da Guerra do Yom Kippur de 1973. O filme foi lançado no Netflix em 14 de setembro.

    – “Operation Finale” (2018) –
    Vários filmes foram feitos em busca do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, que foi tirado da Argentina pelo Mossad enquanto estava disfarçado de comissário de bordo da companhia aérea israelense El Al. O último desses filmes, “Operation Finale”, foi lançado em 29 de agosto. Ben Kingsley interpreta o papel de Eichmann, que foi enforcado em 1962.

    – “Munique” (2005) –
    Dirigido por Steven Spielberg, é talvez o filme mais conhecido no Mossad. Ele conta a história da “Operação Ira de Deus”, que realizou os assassinatos de 11 palestinos em retaliação ao “Massacre de Munique”, a tomada de reféns e assassinato do mesmo número de membros da equipe olímpica israelense nos jogos de verão de 1972. Indicado em cinco categorias do Oscar, o filme arrecadou mais de US $ 130 milhões nas bilheterias.

    – “A Dívida” (2010) –
    Adaptação britânico-americana de um filme israelense contando a história de três agentes do Mossad tentando exfiltrar um ex-nazista. É vagamente baseado na busca por Eichmann e outro criminoso de guerra nazista, Josef Mengele, que morreu sem ser capturado.

    – “Live and Become” (2005) –
    Na esperança de salvar seu filho, um cristão etíope disfarça o menino como judeu. O filme franco-israelense conta a história do menino e sua chegada a Israel quando ele conhece uma nova cultura, o judaísmo, o racismo e o conflito com os palestinos.

    – “Os Patriotas” (1994) –
    O filme do diretor francês Eric Rochant sobre um jovem judeu francês recrutado pela inteligência israelense. Suas missões são vagamente baseadas na “Operação Opera”, quando Israel destruiu o reator nuclear de Osirak no Iraque em 1981, bem como a história do ex-espião judeu-americano Jonathan Pollard. Pollard foi preso por 30 anos por ter fornecido a Israel milhares de documentos sobre atividades de espionagem dos EUA, principalmente em países árabes.

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