“Aqui você pode ser o que quiser”, responde o protagonista Steevens ao primo Júnior, recém chegado do Haiti no Chile, após este questioná-lo sobre os dreads em seu cabelo. Imigrante com visto de permanência, apartamento alugado e emprego na construção civil, Steevens romantiza sua trajetória como pode, reconhecendo o acolhimento do governo do Chile, ainda que não compreenda a atitude racista e xenófoba de parte de seus habitantes. Sua comunidade preserva a essência da nação de onde partiu, embora, no enfoque religioso, permaneça intolerante e discriminatória em matérias de costume.
“Se Jesus não quisesse, não estaríamos aqui” é o mantra repetido por Stevens e, se assim fosse, também seria vontade divina a via tortuosa que o personagem percorrerá após reagir a (mais um) ato preconceituoso de seu chefe, um capitalista que lucra em cima da mão de obra barata oriunda com o êxodo migratório do Caribe. Caso fosse peruano, Steevens teria um tratamento diferenciado, pois os nativos daquele país gozam um status diferenciado em comparação aos dos demais, berço da colonização europeia escravagista e de onde vieram os negros que (supostamente) não existiam no Chile.
Preso e com o visto de permanência suspenso, Steevens vai preso. Libertado na sequência, o protagonista não pode buscar emprego. Sem isto, não pode manter o teto sobre sua cabeça e alimentar-se regularmente. Não demora para que esta espiral o conduza a uma quitinete inumana, a dormir em abrigos da Cruz Vermelha ou, mesmo, a trocar moradia em troca de favores sexuais. A situação não é melhor nas ruas, trabalhando como guardador de carros e vendedor de bombons no semáforo para enriquecer um playboy que, ainda por cima, insiste que os haitianos “deveriam agradecer a chance de trabalhar”, mesmo que este labor lhes retorne apenas um quinto daquilo que vendem.
“Não devemos confiar nas pessoas, porque não vemos seu coração”, e até a comunidade haitiana fecha as portas para Steevens, por este haver prejudicado com a cobertura da mídia desfavorável e tendenciosa em favor do empregador. Não que a vida pregressa de Steevens fosse ‘perfeita’, e este estudo de personagem de Juan Cáceres é doloroso ao retratar como a ilusão de dignidade já é melhor do que ser privado desta. Um retrato que não é só tragédia de um homem, porém de milhões de imigrantes e refugiados, tratados desumanamente em países que não são os seus, por pessoas religiosas que falham em empregar suas doutrinas na prática.
“Deus é branco” (completaria: com olhos verdes) deve ser a explicação para desqualificar os negros diante da população autodenominada branca (latino-americana, norte-americana, europeia etc), e este racismo e xenofobia patrocinados por líderes religiosos e engendrados pela alta cúpula de países com condições de acolhê-los é retratado de modo direto durante a audiência com o burocrata que julga o recurso administrativo contra a suspensão do visto.
Sem ter a quem recorrer enquanto perambula erraticamente pelas ruas chilenas, a narrativa é menos preocupada em resolver seu conflito e mais em retratar o desamparo, desespero e a válvula de escape rítmica, nas canções haitianas que interrompem o fluxo da narrativa. Eu, ao término da exibição, confesso que aceitei a ausência de solução narrativa fora de campo, por imaginar que o Steevens da narrativa era uma ficcionalização da trajetória de Steevens Benjamin, o ator que o interpreta.
Estava errado. Steevens Benjamin, mesmo sendo imigrante haitiano no Chile, não teve uma experiência drástica como a retratada: pôde estudar em uma escola de ensino médio, aprender espanhol, trabalhar metade do tempo como auxiliar de ônibus até ser descoberto como ator. Esta bagagem confere uma imensa autenticidade à performance, mas enfraquece o inconclusivo adeus de uma narrativa empática, inclusive no modo em como nos abandona da mesma forma com seu protagonista. Às vezes, só precisamos de finais felizes, ainda que a vida não os proporcione como queríamos.
Crítica publicada durante a cobertura do 47º Festival de Cinema de Gramado
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.