Textos publicados durante a cobertura do 9º Olhar de Cinema
7) Na Cabine de Exibição (Dir. Ra’anan Alexandrowicz)
Sinopse: “O que se passa numa imagem?”, o cinema nos pergunta muitas vezes. “O que se passa na pessoa que olha uma imagem?”, o faz menos frequentemente. “O que se passa na pessoa que vê sua própria imagem enquanto olha para uma imagem?”, quase nunca. Pois estas três perguntas compõem o quebra-cabeças que o documentarista Alexandrowicz propõe para sua personagem, mas também para si mesmo e, mais decisivamente, para nós. Nesse jogo de espelhos deformadores, se veem refletidas as relações de poder entre Israel e Palestina, mas também entre uma câmera e aquilo que ela filma; entre um filme e aquele que o assiste.
Mesmo enquanto arte, o cinema é também uma forma de experimentação que, neste documentário, serve ao intento de entender a maneira com que o jovem contemporâneo reage à imagem e de que forma esta reação altera a percepção de realidade construída a partir do consumo de informações e desinformações. Em vez de ratos de laboratório, estudantes universitários; no lugar da roda onde aqueles eram postos, a cabine de exibição do título, em que a tela do monitor exibe vídeos reais e ‘reais’ a respeito da ocupação de Israel na Palestina, produzidos por um grupo de direitos humanos B’Tselem, como também por grupos conservadores. Apesar de a existência de apenas um sujeito submetido à pesquisa caminhe de encontro ao básico da metodologia científica, o resultado oferece uma conclusão estarrecedora da relação entre o sujeito e a imagem.
A estudante é Maia Levy, norte-americana judia, que a cada excerto de vídeo exibido no monitor, pondera, pontua, questiona. Esta dinâmica, a princípio, provocou-me questionamentos e incômodo, à medida que a direção de Ra’anan Alexandrowicz subtraía o papel ativo do espectador da equação e o tornava um mero receptor de informações pré-prontas. O espectador nem está em condição de opinar, tampouco de criticar a análise de Maia, enquanto lança dúvida sobre aspectos formais (ex. o cinegrafista estar no momento exato para registrar determinado evento) e mesmo narrativos (ex. a criança que esquece, temporariamente, qual seu nome ao ser confrontada por um soldado).
É apenas a partir da metade que a proposta metodológica de Ra’anan é melhor compreendida, pois não somente está dedicado a avaliar a reação de Maia aos registros, mas também desta em relação a percepção tomada meses atrás. Não é a mesma pessoa, óbvio, apesar de conservar pré-julgamentos em certas ocasiões e retificá-los noutros casos. Entretanto, o impacto do experimento é diluído ante a ideia de dirigir a execução em direção ao resultado esperado, e com isto desistir da metodologia a partir do momento em que Ra’anan confessa à Maia por que a considera um sujeito importante. É como se o rato de laboratório pudesse ser mais cooperativo se soubesse que está sendo joguete dos cientistas e por qual razão.
Ao fim, não deixa de ser interessante notar o mundo da pós-verdade e o da realidade construída a partir da adição de tijolos de informação e da supressão do que não convém acrescer na construção da moral, pois contrário à ideologia individual e a anos de sedução imagética propagandística.
8) A Metamorfose dos Pássaros (Dir. Catarina Vasconcelos)
Sinopse: No longa de estreia da portuguesa Catarina Vasconcelos, os mistérios habitam os detalhes. A passagem do tempo é sentida nas imagens da memória, presentificadas nos corpos e paisagens rigorosamente encenados para a câmera. Neste filme-ensaio afetivo, a escrita de si feminina, consciente de seu próprio caráter fabular, desdobra-se nas brechas de um caleidoscópio familiar: entre pai e filha, avó e neta, com a ausência espaçosa da palavra mãe. À narração over, também partilhada poeticamente, cabe o gesto de alinhavar instantes perdidos, resgatar a História de um país que reluta em mudar, forjar novos laços e genealogias por meio (e por causa) do cinema.
Estar na posição de espectador e, pior, de crítico da opção narrativa e estilística com que a cineasta portuguesa Catarina Vasconcelos rememora a árvore genealógica da própria família é intimidador, apesar de estar grato em poder compartilhar este insight íntimo. Ao longo deste documentário, a diretora confidencia as epístolas trocadas entre seus avós, Henrique, marinheiro, e Beatriz, dona de casa, e também lança luz na criação do pai, Jacinto, com quem divide um ponto comum: a perda da figura materna aos 17 anos.
No lugar da melancolia ou do saudosismo piegas, uma narrativa em formato de álbum de memórias estruturada a partir de narradores fora de campo, que declamam um poético e comovente texto a frente de imagens evocativas, e cujo significado não está contido ou encerrado em si mesmo. Desde o olhar cansado introdutório, convidativo a este passado presente e vívido igual a penas de pavão, à mulher de cabelos loiros cujo rosto não fitamos, Catarina estimula o prazer em apreciar as imagens e interpretá-las aliadas ao texto de fundo. Não parece ser aleatória a estrutura da narrativa, e ainda que eventual transição não ressoe intelectualmente em nós, emocionalmente somos afetados sem entender como.
Este refúgio no aconchego da memória, na relevância da figura materna e na identidade de destinos de Catarina e seu pai encanta com a tristeza inata à trajetória, mas sem demonstrar pesar. E com o passar do tempo, o documentário transmuda-se: a narração fora de campo, estímulos sonoros por mais poesia que convirja, adquire alma, rosto e expressão, enquanto isto as imagens despem-se de textura, concretude e cores, antes de viraram fragmentos de sensibilidade.
9) Victoria (Dir. Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer, Isabelle Tollenaere)
Sinopse: As vidas negras importam neste filme poderoso sobre uma nova fundação do Oeste americano. Três diretoras belgas colaboram com Lashay T. Warren, um jovem esperançoso que se mudou com a namorada e os filhos de Los Angeles para California City, um projeto iniciado na década de 1960 no deserto de Mojave e ainda inacabado, que abriga menos de 15.000 pessoas hoje. Lashay trabalha varrendo ruas desertas, faz longas caminhadas até a escola para estudar sobre os colonos pioneiros e se filma em um diário ao longo de quase dois anos. A partir de um lugar descartado, contar histórias se torna uma maneira de escrever seu próprio nome no mundo.
É curioso assistir a uma história tipicamente norte-americana através da lente de cineastas belgas, e perceber em como a abordagem estrangeira oferece, através do olhar, um Estados Unidos inusual a quem está acostumado apenas a consumir a versão cinematográfica do Big Mac. O assunto deste documentário atrai por contar a história de California City, idealizada para ser algo, mas construída às pressas antes de ser abandonada no meio do deserto, e tal projeto malsucedido não é diferente das vidas desalentadas na árida terra de oportunidades do Tio Sam, igual a de Lashay.
A partir do vídeo-diário que produz através do celular e é reproduzido em trechos, o espectador pode perceber a relação de identidade entre o protagonista e o ambiente que o envolve. De ambos, o Estado desistiu. Entretanto, existe um conforto em saber que detrás de tempestades, há arco-íris, frase citada por Lashay, que reconhece não estar no ambiente adequado para estabelecer a família e a carreira e demonstra a saudade de Los Angeles enquanto visita as ruas via Google Maps. Contudo, isto não o impede de levantar a cabeça e fazer seu nome brilhar, da forma como é possível, naquele tipo de vitória agridoce (e que já pudemos conferir nesta edição do Olhar de Cinema em Los Lobos, por exemplo).
Ao fim, o retrato pintado pelo trio belga dos Estados Unidos oferece a realidade bruta desta cidade árida e ironicamente irrigada somente quando sua infraestrutura pobremente planejada é avariada, aliado à vida desta homem cuja oportunidade surgiu pelo acaso fortuito do abandono.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.