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Entre Nós Talvez Estejam Multidões | Longa Noite | Sertânia

Críticas dos filmes exibidos no 9º Olhar de Cinema, 4ª edição.

Textos publicados durante a cobertura do 9º Olhar de Cinema

10) Entre Nós Talvez Estejam Multidões (Dir. Pedro Maia de Brito, Aiano Bemfica)

Sinopse: A construção de uma comunidade vai muito além dos muros erguidos e tijolos assentados: está na invenção cotidiana daquilo que é comum, na vida partilhada em seus perrengues e vitórias. Sob essa premissa, este longa de estreia (dos diretores de Na Missão com Kadu) documenta o dia a dia na ocupação urbana Eliana Silva, em Belo Horizonte, às vésperas das eleições de 2018. Visto de dentro, o território arduamente conquistado torna-se tão protagonista quanto seus moradores, que discorrem sobre militância política, companheirismo, amor. Junto aos registros e depoimentos está a (re)invenção da subjetividade por meio da arte, indo na contramão das narrativas totalizantes que reduzem suas existências a notícias de jornal.

Com a câmera montada no tripé registra, a alguma distância, assistimos à reunião de moradores da ocupação Eliana Silva, a comemoração de possuírem endereço e CEP com a instrução de enviarem cartas para si mesmo a fim de que os Correios incluam o logradouro na rota de entrega e o alerta de que não é por esta razão que deverão baixar a guarda até terem a titularidade do imóvel com a expedição do documento de posse. A partir desta cena, estendida por cerca de 4, 5 minutos, a dupla de diretores delimita a linguagem narrativa com que exibirá parte do cotidiano desta ocupação e da vida de seus moradores, uns mais interessantes do que outros, embora não menos importantes em consideração ao ecossistema do local.

Sob o bordão ‘Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito’, os integrantes do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (ironicamente MLB) discutem a política da ocupação a meses da eleição de Jair Bolsonaro à presidência e as incoerências em torno do debate que acontece nas ruas e bares da ocupação: como Jesus seria acolhido caso descesse na Terra nos dias de hoje, ou se este seria comunista ou capitalista, é o ponto de início para que o documentário, através da voz do povo, exponha como a propaganda política enraizou falsas verdades em suas cabeças, tornando-os meros replicadores não pensantes de chavões repetidos à exaustão nas redes sociais.

A política partidáriaé parte do problema, mas não o fim, enquanto Pedro e Aiano obtêm, com maior proximidade, relatos pessoais de cada morador, ex., a senhora que lavava roupa em troca de comida e agora exulta ter um lar, ou daquele que deseja o bom a seus filhos, não o peso da construção civil sobre as suas costas. De novo, a câmera permanece à altura do olhar, a fim de estabelecer a empatia e permanece estática sem recorrer a cortes. Intercalado a isto, a arte da ocupação em cima do palco improvisado, e a visão aérea daquele mundo de pessoas, apenas batalhando para ter aquele mínimo existencial que para muitos costuma vir de graça: dignidade, na forma da casa própria.

9º Olhar (2020) - seleção

11) Longa Noite (Dir. Eloy Enciso)

Sinopse: O terceiro longa-metragem do galego Enciso encara o fascismo de frente. O filme transcorre nas sombras do regime de Franco, com um roteiro baseado em textos de diversos escritores espanhóis e um enredo desencadeado pelo retorno do misterioso Anxo (interpretado por Misha Bies Golas) à sua aldeia após desaparecer durante a Guerra Civil Espanhola. As pessoas ao seu redor descrevem aquela época, suas memórias e suas vidas ulteriores com a escolha entre submissão e resistência ecoando nas palavras de cada orador. A cinematografia de Mauro Herce transmite a luz e força de espíritos individuais enquanto a escuridão paira sobre suas cabeças.

Eloy Enciso propõe este teatro filmado em que avatares sociais erigidos durante e após o regime do ditador fascista espanhol Francisco Franco declamam textos históricos de autores consagrados: Max Aub, José Maria Aroca, o argentino Rodolfo Fogwill, Ángeles Malonda e muito mais. Do ponto de vista literário, exclusivamente, a narrativa é um banquete de palavras para quem gosta de saciar esta fome por arte na forma mais pura e bruta. Para quem ama cinema, não há muito senão o teatro filmado, com atuações solenes, menos dramáticas, e o cenário que tenta servir de palco ao que está sendo dito.

Não digo que não seja relevante, quanto mais nos dias atuais em que vemos o assustador retorno da ideologia fascista de forma sorrateira e desembaraçada, apenas não é cinematográfico ou ao menos não o bastante. Eloy Enciso até tenta criar o texto próprio a partir da colcha de retalhos dos autores de que tomou o discurso de empréstimo; em certo grau, o diretor-roteirista cria o seu Frankenstein, e dá sentido próprio as ideias extraídas de contextos literários múltiplos. Este Frankenstein começa sua caminhada na cidade, antes de ruminar na floresta quem exatamente é, com a desconfiança de que ao término do percurso permanece sem saber a resposta.

A crítica social está presente menos por obra da direção, mais por trabalho do texto, até porque ao recorrer, na maioria das vezes, a planos fechados ou quando não escuros, Eloy despreza o poder da imagem – o que, ex., A Metamorfose dos Pássaros não abdicou com uma proposta não idêntica, mas semelhante. O resumo de ideias articuladas – a invisibilidade da pobreza e deficiência, a carência de empatia, a condição do preso – sufoca-se nesta estrutura preguiçosa e, por que não, deselegante.

LONGA NOITE - Eloy Enciso | Doclisboa'19 - YouTube

12) Sertânia (Dir. Geraldo Sarno)

Sinopse: Mais de 50 anos depois de realizar alguns dos essenciais documentários acerca do cotidiano do sertão nordestino e da vida dos migrantes oriundos de lá, Geraldo Sarno retorna a esse espaço com a liberdade e clareza que apenas a maturidade permite atingir. Não é exagero dizer que Sertânia conversa de igual para igual com Guimarães Rosa ou Marcel Proust em seus voos (e rastejos) pela memória e pela fabulação. A história de seu protagonista costura com precisão Canudos, como nosso “pecado original”, com a vida migrante no Sudeste e o cangaço. Não é pouco.

O preto & branco superexposto e também opções de composição arrojadas, detrás de arbustos do sertão nordestino e rente à terra árida, sugerem o pacto da direção de Geraldo Sarno com a quebra da ilusão de realidade, a fim de que Sertânia não seja somente o irmão temporão daquele cinema de Glauber Rocha, Ruy Guerra ou Nelson Pereira dos Santos. Esta mais próximo do revisionismo de A Luneta do Tempo, de Alceu Valença, apesar de contar com a metalinguagem a favor do roteiro não encenado convencionalmente.

A partir da memória delirante de Gavião, está-se diante da história mais antiga do Brasil: a da luta de classes, que enxergava no sertão o espaço ideal para que cangaceiros a mando da distribuição de terra e bens enfrentassem a polícia a mando dos latifundiários que controlavam as riquezas locais e com a benção da igreja que também detinha interesses particulares. Contudo, a intenção de Geraldo é acrescentar a este discurso a partir da estética e, sobretudo, da encenação onírica, em que a morte é um rito de passagem para a mesma realidade excruciante que pensava haver deixado. Não existe o respiro, nem a gota d’água, porque Geraldo não narra a trajetória de Gavião, mas de Gaviões, que iludidos pelo poderio de líderes carismáticos, terminam cegos diante do sonho bonito de dignidade.

Exibir a equipe de produção detrás dos eventos ou mesmo a orientação de como engatilhar o fuzil é a forma de Geraldo retratar que a exploração de Gavião ou de Justino não está encerrada no mito do sertão, mas além deste. São peões do tabuleiro, a mando não só do monopólio da bala e da ambição, mas da história do cinema nacional.

Crítica | Sertânia (Geraldo Sarno, 2019) - Plano Crítico

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