Textos publicados durante a cobertura do 9º Olhar de Cinema
13) Um Filme Dramático (Dir. Eric Baudelaire)
Sinopse: Um Filme Dramático pergunta a quem pertence o cinema. E o faz por meio de cenas da primeira turma matriculada no recém-construído Collège Dora Maar, no subúrbio parisiense de Saint-Denis, cujos alunos usam câmeras para debater como representar o mundo que os cerca e que mundo almejam. Baudelaire trabalhou em uma comissão durante quatro anos (começando em 2015) junto com alunos do ensino médio, vários dos quais advém de famílias de imigrantes e enxergam a França através de um olhar estrangeiro. Com o passar do tempo, surge uma construção de confiança a partir do processo de coautoria, aprendizagem e um modelo social provisório.
Algumas vezes, aflora o desejo de analisar a narrativa, além do que evidenciado em imagem. Se esta fosse a metodologia crítica por mim defendida, então Eric Baudelaire teria concretizado um projeto artístico não somente sobre o processo criativo e executivo do audiovisual, mas de provocação das faculdades intelectuais de pré-adolescentes franceses, no esforço de empregar a arte e o fazer desta como meios para estimular o debate. Consigo inclusive imaginar a satisfação no rosto do diretor ao separar dezenas ou centenas de horas de material filmado, enquanto montava o documentário na pós-produção, e confirmar o amadurecimento de jovens em torno de temas caros para a sociedade, ex. discriminação racial e religiosas, imigração etc. O audiovisual é apenas o meio no processo, não o fim, e isto me encanta.
Entretanto, a análise do material filmado e levado à versão final do documentário evidencia certos desequilíbrio na pretensão do diretor, em não atingir o ajuste fino entre o registro metalinguístico, aí incluída a dificuldade imanente de colocar diretores, diretores de fotografia, supervisores de som inexperientes para registrar o que veem e ouvem, e os tópicos postos em discussão, estes filmados por Eric, e cuja tentativa de manter-se invisível não impede que os alunos dirijam-lhe o olhar ou até posem-lhe pergunta para as quais não terão resposta.
Estas abordagens poderiam render documentários fascinantes se individualmente tomados, mas juntas, enfraquecem-se, não por incompatibilidade, mas por partirem de metodologias subtrativas e não construtivas. O audiovisual de Eric é estruturado em saber o que deseja extrair: da discussão a respeito de racismo, obtém a confirmação da inocência infantil naquele universo pluralista, mesmo quando falte conhecimento ao interlocutor. Isto acontece ainda ao aludir à discriminação religiosa ou à imigração. Já do momento em que quatro jovens debatem o conceito de ficção e documentário, e o que não constituiria este (erroneamente), o diretor enfatiza o processo educativo, até quando se manter silente no pano de fundo sem oferecer a resposta que os alunos tanto desejam.
De outro turno, o filme produzido pelos jovens é mais apaixonado durante a descoberta autodidata e a sucessão de “erros” que lhes farão descobrir qual visão melhor combina com a aspiração de cada um: cinema experimental ou narrativo, abordagem objetiva ou subjetiva. À medida que a narrativa avança, os jovens compreendem a técnica, ex. o zoom, a sincronização sonora, a técnica de foley na criação de efeitos sonoros, e a partir deste aprendizado brincam com o que domina a fim de bolar regras próprias.
A proposta extra-narrativa mereceria a avaliação máxima de quem fosse, mas o resultado obtido teria que solucionar esta incomunicabilidade entre abordagens para maximizar o efeito individual.
14) O Índio Cor de Rosa contra A Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels (Dir. Tiago Carvalho)
Sinopse: No momento em que uma pandemia massacra as populações indígenas do Brasil, sob o beneplácito de um governo saudoso da ditadura, parece urgente ouvir a voz do médico sanitarista Noel Nutels, que ressurge aqui em seu único registro remanescente, falando ao Congresso em pleno regime militar. Em cotejo com um material audiovisual impressionante, capturado por ele em suas missões aos territórios indígenas, essa voz não esconde a agressividade inata a seu lugar de fala. Nutels não é, aqui, o herói de um cordel laudatório: é um fantasma consciente das suas faltas que interpela o silêncio cúmplice dos que se calam.
Um documentário de montagem é aquele em que o diretor, a partir de vídeos de arquivos obtidos, combina-os a fim de extrair o sentido desejado e contar uma história, tendo o trabalho de articular cada elemento para que esteja ali a voz de criador, não apenas a intenção do cinegrafista originário, que, neste caso, era o médico sanitarista e indigenista Noel Nutels, autor da denúncia do genocídio dos povos nativos brasileiros. É como se o diretor ressignificasse a filmagem originária, a partir da atribuição de um sentido contemporâneo e alinhado a sua ideia subjetiva.
Assim, com a câmera 16 mm, cujas filmagens foram doadas à Cinemateca Brasileira, Noel registrou o cotidiano das populações indígenas enquanto as atendia para vacinação ou realização de exames. A estas, o diretor Tiago Carvalho introduziu, em narração fora de campo, os trechos do depoimento de Noel à CPI do Índio, realizada em 1968, em que denunciava barbaridades praticadas contra esses povos originários: a catequização que lhes despia da crença que os individualizava, a aculturação na adoção de hábitos, ex. o vestir, e o genocídio acentuado na Ditadura Militar em nome do progresso e do avanço do agronegócio em terras a este não pertencentes.
Apesar de haver mais de meio século que separa este passado do hoje, nada mudou senão para pior. Neste retrato histórico, sobeja a boa política, narrada com muito conhecimento de causa e através de imagens evocativas que chamam a atenção a esta questão que, hoje mesmo, é discutida nas casas legislativas do Congresso Nacional e no gabinete da Presidência da República em desfavor daquilo que tentou defender, como pôde, Noel Nutels. É, também, a sua forma, um documentário biográfico em como ilustra o homem a partir de ações e da luta no que acreditava.
15) Cabeça de Nêgo (Dir. Déo Cardoso)
Sinopse: O universo de uma escola pública cearense é aqui examinado em sua potência de revolução social. Quando o jovem Saulo Chuvisco (interpretado por Lucas Limeira) é alvo de um insulto racista que sai impune, e recusa-se a deixar o espaço da escola em protesto, as consequências do seu ato indisciplinar afetam toda a comunidade. Com uma narrativa envolvente aliada a um questionamento de fundo sobre o poder das imagens, o filme opera uma crítica contundente às dinâmicas de discriminação racial e de classe no Brasil, apostando na tomada de consciência coletiva que leva à ação popular direta.
A maneira com que Spike Lee trata a questão racial é eficientemente dramática porque impregnada pelo senso de injustiça engatado na goela do ativista e o realismo cruel de quem sabe que, no fim do dia, não existe final feliz que não a revolução. Brancos não cederão aos negros por arrependimento, mas pelo combate sem concessão nem descanso. De certa maneira, as narrativas de Spike Lee tem um quê da filosofia de Malcolm X, e por mexer com o brio de cada um, o diretor torna-se também a fonte de inspiração para jovens cineastas contarem suas próprias histórias, como é o caso de Déo Cardoso.
O cineasta cearense mistura temas complementares, no que posso definir como Um Dia de Cão encontra Faça a Coisa Certa no ambiente da escola pública brasileira. É lá onde Chuvisco é agredido verbalmente por um colega de turma, tratado injustamente pelo corpo docente, e de onde não sai caso não sejam atendidas todas as suas demandas, nenhuma delas desarrazoada. A implementação de melhores condições escolares e de tratamento mais humano aos alunos é o ponto de partida deste jovem idealista após confirmar o estado decrépito da escola e o descaso dos administradores em ano de eleição.
A situação inicia com tentativas diplomáticas de tentar forçar o jovem a desistir, mas, como o protagonista típico do cinema de Spike Lee, não existe desaforo que seja levado para casa sem uma resposta à altura da ofensa. Quando não por Chuvisco, por aqueles que ocupam a escola do lado de fora e enxergam o planejamento político para tentar minimizar o caso através da imprensa a favor do Estado, que só tenta pichar a imagem dos estudantes, enquanto a independente é negada acesso. Enquanto isto, dentro da sala dos professores, há o racha entre educadores e funcionários públicos acomodados, ávidos em estereotipar cada um daqueles jovens e assim lavar as mãos.
Enquanto isto, agentes escolares começam a perceber o verdadeiro interesse dos administradores, ora combinado no almoço regado a vinho (talvez a única construção tola da narrativa), e tudo o que podia ser resolvido de modo simples avoluma na bola de neve que desagua no terceiro ato típico do cinema de Spike Lee com a cara do cinema brasileiro. Se exagero na comparação com o cineasta, é porque os elementos estilísticos dele estão presentes: a utilização de trechos documentais a fim de comprovar o argumento quanto à truculência da polícia ou o emprego da quebra da quarta parede para estabelecer maior afinidade com Chuvisco.
Não tenho dúvida de onde Déo Cardoso tirou sua inspiração, e para seu primeiro trabalho, não pôde buscar fonte melhor. Que com esta segurança de haver começado a carreira em longa-metragem com o pé direito lhe dê mais confiança em adicionar mais o ‘eu’ em seus trabalhos futuros que, adianto, estarei entusiasmado para conferir.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.