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Vento Seco | Letra Maiúscula | Antena da Raça

Críticas dos filmes exibidos no 9º Olhar de Cinema, 6ª edição.

Textos publicados durante a cobertura do 9º Olhar de Cinema

16) Vento Seco (Dir. Daniel Nolasco)

Sinopse: No árido interior de Goiás, um triângulo amoroso é desencadeado pela chegada de um misterioso forasteiro, perturbando a pacata rotina de Sandro (interpretado por Leandro Faria Lelo), funcionário de uma fábrica de fertilizantes. Em seu primeiro longa de ficção depois de dois documentários e vários curtas, o goiano Nolasco continua sua exploração da geografia do cerrado e do imaginário homofetichista. Apropriando-se, ao seu modo inconfundivelmente brasileiro, de elementos camp explorados por nomes essenciais do cinema queer, ele elabora um diálogo tórrido e ousado com os códigos melodramáticos.

Alguns filmes demandam uma reflexão a respeito de onde encerra a arte e inicia o sensacionalismo como forma de escandalizar, não de somar camadas a personagens, nem à narrativa. Não quer dizer que não seja artístico rasgar o código arcaico da moral e dos bons costumes de quem só busca uma desculpa para o próprio preconceito, mas apenas que excessos terminam por sufocar a dramaturgia e a ilusão de realidade indispensável para que sua eficiência. Irreversível, Azul é a Cor Mais Quente, Brown Bunny e este Vento Seco, todos têm em comum um desejo de chocar mais do que de narrar, e, embora compreensível o desejo de Daniel Nolasco em tirar a mordaça da boca, o sexo explícito em excesso frustra quem busca mergulhar na mente de Sandro.

À narrativa, não faltam metáforas que retratem a sexualidade emudecida e o ciúme demonstrado por Sandro: o árido Goiás, cuja secura é mencionada a cada intertítulo climático; o bem produzido pela empresa onde o protagonista trabalha, fertilizante, uma ironia para quem possui um tecido cardíaco infértil; e o comportamento esquivo de Sandro em não aderir à petição do sindicato, neste desejo de permanecer não integrado àqueles ao redor. Neste contexto, Leandro Faria Melo é eficaz em ser a tela em branco sobre a qual Daniel Nolasco projeta emoções, com base em decisões estilísticas, tendo reforço no semblante rude e na voz monocórdica, que sufocam seus fetiches.

Até aí, a narrativa explora o protagonista no mundo real e também expande isto à fantasia detrás de luzes néon que simbolizam estarmos no imaginário sadomasoquista de Sandro. É então que Daniel Nolasco, em vez de recorrer a soluções criativas, ex. o lamber do banco de couro da motocicleta, apela ao sexo explícito irrestrito, como meio de ilustrar a manifestação erótica do protagonista. Não somente por ser óbvio, esta decisão desperta do transe induzido pela universo diegético narrativo. O ato sexual toma o primeiro plano, e com isto o protagonismo, em um estudo de personagem que, nestas horas, perde quem desejávamos conhecer em troca da recompensa imediata.

O diretor ainda emula a atmosfera de thrillers sexuais a partir de composições evocativas e da trilha sonora misteriosa e psicodélica, naquela que é a mera máscara de um cinema queer excludente, não inclusivo, apaixonado com a ideia de poder romper barreiras morais, do que em utilizá-las a serviço da narrativa. Não contra ela.

Mato Grosso digital - Variedades - “Vento Seco”, dirigido por Daniel  Nolasco, será exibido pela primeira vez no Brasil no Festival Internacional  Olhar de Cinema, de Curitiba.

17) Letra Maiúscula (Dir. Radu Jude)

Sinopse: “Queremos justiça e liberdade!”, gritava em caixa alta a inscrição em um muro de Bucareste, em 1981. A infame história do adolescente Mugur (interpretado por Bogdan Zamfir), perseguido pela ditadura de Nicolae Ceausescu, é inventivamente narrada por Radu Jude (de A Nação Morta, Olhar ’18) através da costura entre relatórios de segurança nacional e imagens televisivas da época. Inspirado em uma peça teatral, o filme lança mão da artificialidade do dispositivo cênico emaranhado à pesquisa de arquivo, lembrando-nos a todo momento que a História, assim como os discursos, está constantemente em disputa.

Letra Maiúscula é um documentário de contrastes proporcionados pela justaposição oportuna do arquivo da época como consequência da abertura política da Romênia após o término da ditadura socialista do ex-presidente Nicolau Ceaușescu, deposto na revolução de 1989. A ideia é executada em envolvente simplicidade: enquanto narra a perseguição estatal contra o adolescente Mugur Călinescu por haver protestado contra as mentiras contadas pelo governo, intercala trechos de programas televisivos, todas pró-governo (ex. números musicais elogiando efusivamente Nicolau) ou apenas banais (ex. o aumento da capacidade de armazenamento das geladeiras produzidas no país).

Não há meia interpretação desse dispositivo narrativo: à medida que o governo, através de canais oficiais de comunicação, alimentava a sociedade com banalidades ou falsas verdades, tentava calar a todo custo Mugur, na trama central encenada com o ascetismo de Robert Bresson. Isto significa que os atores no teatro artificial de Radu Jude não exibem emoção ao comunicar, diretamente ao espectador, a investigação da pichação, a apreensão do adolescente e sua punição. No lugar do ator, um mero instrumento de comunicação, cuja frieza confere desolação ao desenrolar de eventos.

Enquanto isto, Radu Jude brinca com a linguagem. Logo após mencionar o retrato falado de quem critica o governo, o diretor corta a imagens de bebês inocentes, e reforça o nexo de quem, no fim das contas, é a vítima da perseguição de governos assenhorados do poder como se este derivasse de si, não do povo, o que justifica o posicionamento de certo personagem a frente de um halo luminoso como se santo fosse. Apesar de 128 minutos estenderem a ideia central perto do exagerado enfado, o documentário conserva sua força na construção de sentido pela montagem original e atemporal.

UPPERCASE PRINT TRAILER - YouTube

18) Antena da Raça (Dir. Paloma Rocha e Luís Abramo)

Sinopse: Em 1979, enquanto o Brasil vivia o momento conturbado da Lei da Anistia, Glauber Rocha realiza para a TV Tupi o programa Abertura, no qual interroga de frente um Brasil contraditório e em ebulição, pleno de utopias mas sempre sob o peso de chagas seculares. Quarenta anos depois, sua filha Paloma e o parceiro Luís Abramo voltam a esse material, recentemente restaurado, e o colocam em fricção com cenas do cinema de Glauber – mas também com imagens do Brasil de 2018: um país ainda conturbado e contraditório, que parece perseguir o rabo de sua própria história.

A dialética entre ontem e hoje é o tema deste documentário interessado em revelar Glauber Rocha em frente às câmeras, mas não detrás delas, como um apresentador inteligentemente zombeteiro e popular, espécime raro na televisão brasileira, para então contrapô-lo ao Brasil de hoje, em tema e também em forma do programa. A abordagem de Paloma Rocha e Luís Abramo, na forma de análise da conjuntura sociopolítica a partir do resgate do período do regime de exceção da Ditadura Militar, tem sido a constante fora do círculo artístico, então é natural que o cinema tente desenvolver esta ideia em linguagem de imagens.

Com o entusiasmo aguerrido de Glauber Rocha, que abominava meias-verdades e preferia o direto ao mal dito, os diretores escancaram as contradições das ruas na forma desta dicotomia burra entre direita e esquerda, enquanto o brasileiro médio existe noutro espectro da realidade, o que batalha para sobreviver não importa quem esteja no poder, daí a razão do retrato do vendedor ambulante. Este Brasil de incoerências é apunhalado onde machuca por esta colagem de ideias e sentidos, mas que arrefece assim que os diretores introduzem rostos de hoje, ex. Caetano Veloso, não para somar à ideia, apenas para congratular quem fora Glauber Rocha.

Em um documentário com só 75 minutos, a ideia de que parte relevante da metragem seja, na falta de termo melhor, desperdiçada em elogios e homenagens pós-morte, não em construção de sentido e ideias, iria de encontro ao cinema novo de Glauber Rocha, cuja irresignação e enfrentamento eram regra, não muleta de descanso. Quando se aproxima disto, embora na forma de profecia anunciada, o documentário tira o melhor de Glauber, que, acredito, não tinha a vaidade em ser amado, mas em ser temido pela voz firme que ainda hoje ressoa.

Antena da Raça - 13/03/2019 - Ilustrada - Fotografia - Folha de S.Paulo

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