Em antologia, Wes Anderson homenageia o jornalismo e o cinema!, por Márcio Sallem
Wes Anderson é uma grife cinematográfica, cujo estilo e forma tornam compreensível o desejo de atores renomados em participar de seus projetos, ainda que em participações abreviadas. O apego à estética, ao acabamento e formatação de planos simétricos, a movimentação ortogonal da câmera, em aparente detrimento ao conteúdo e desenvolvimento dos personagens, é o argumento que você encontrará predominantemente neste ou naquele texto a respeito de A Crônica Francesa. Belo, mas vazio, alguns dirão.
Não poderia discordar mais. Wes Anderson é um destes artistas que colocam ‘a’ maiúsculo na palavra arte, não porque seus quadros cinematográficos parecem verdadeiras pinturas, mas em razão da criativa liberdade injetada em imagens individualmente consideradas e em conjunção com outras através da montagem e da associação de ideias. Enquanto alguns diretores apenas contam histórias, Wes Anderson narra experiências que restituem ao cinema o atributo mais rico que detém: o poder da imagem.
A Crônica Francesa é uma homenagem à atividade jornalística em como enxerga o compromisso de vida, literal, do editor Arthur Howitzer, Jr. (Murray), do fictício periódico The French Dispatch, ao princípio “tente fazer parecer que você escreveu dessa forma de propósito”. É que Arthur, muito mais do que se levar por dificuldades financeiras ou jogos políticos, é um editor em extinção que confere liberdade para que seus repórteres coloram, com jogos de palavras, erros de escrita, idiossincrasias, reportagens que proporcionam a possibilidade de os leitores reviverem experiências únicas.
É a oportunidade para que Wes Anderson empregue a estrutura de antologia, com a narrativa que se subdivide em curtas-metragens que ilustram os artigos escritos pelos personagens interpretados por Owen Wilson, Tilda Swinton, Frances McDormand e Jeffrey Wright, acerca de eventos ocorridos na França naquele particular período do tempo. Uma história sobre um artista talentoso condenado por duplo homicídio e o romance que teve com uma guarda penitenciária, um jovem estudante e ativista que tenta redigir um manifesto ou um sequestro de um filho de um comissário para atender demandas.
Como mestre da linguagem cinematográfica, Wes Anderson utiliza, além do que já mencionei acima, a intercalação entre preto e branco e cores, a modificação da razão de aspecto durante a narrativa – o que realizou em O Grande Hotel Budapeste –, a alteração da forma cinematográfica do live action em animação, o design de produção e a encenação que deve bastante ao teatro em introduzir cenas que funcionam no primeiro, segundo, terceiro ou mesmo quarto plano, utilizando todo o espaço que o quadro cinematográfico lhe permite para contar a história. Ou só para rechear o espaço e então saciar seu perfeccionismo obsessivo-compulsivo.
Apesar de funcionarem de forma individual, cada história também ressignifica elementos utilizados noutras como se conferisse unidade ao periódico a partir da edição de Arthur. O contraste entre o preto e branco que denota o interior da prisão de segurança máxima e as cores que vibram quando revelam o contato com a arte de Moses (Del Toro) serve como trampolim para que enxerguemos as ações de Zefirelli (Chalamet) e a paixão, ou não, com o movimento estudantil. Noutro momento, um quadro cinematográfico é subdividido em dois para mostrar o antes e o depois de uma cidadezinha; recurso que torna a ser empregado, com o mesmo significado, mas agora como um contraste etário entre os interesses amorosos do ativista rebelde.
Wes Anderson articula histórias que, como conteúdo – que pobreza seria do cinema se fosse só isto, não é mesmo? –, funcionam a sós, porém que apenas poderiam existir em conjunto, como partes do todo, que reencena o tema da obra do autor. Personagens tristes, infelizes, miseráveis e deprimidos naturalizadas dentro do cinema lúdico e das cores pastéis que dificultam enxergar o sofrimento de, por exemplo, Moses ao ser separado de sua musa apenas para tê-la gravada nas paredes da prisão ou de um desfecho trágico revelado a partir de uma brincadeira imagética típica do diretor.
A Crônica Francesa é uma celebração além do jornalismo, é também do cinema, em como encampa a defesa de que o conteúdo cinematográfico não é o que se conta, mas como se conta. Igual a Arthur, o mais romântico dos personagens românticos desta narrativa e não por menos interpretado por Bill Murray, o mais fetiche da trupe de atores que habitualmente colabora com o diretor, Wes Anderson também não consegue evitar de se entregar à sua individualidade e a suas características artesanais mais marcantes.
Sorte a nossa!
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.