Jordan Peele discute cinema e olhar em um dos melhores filmes do ano
Corra! e Nós deram ao diretor, roteirista e produtor Jordan Peele a liberdade de contar a história que deseja, da forma que deseja. Considerado o êxito comercial e crítico do ambicioso Não! Não Olhe, Jordan manterá com justeza essa prerrogativa.
Com a intenção de discutir a importância do registro documental, a questão do olhar no cinema e o papel do artista na criação da imagem, Jordan escreve um roteiro que inicia com um chimpanzé coberto de sangue, momentos antes de quebrar a quarta parede e encarar o espectador. A revisitação da cena revelará para onde estava olhando o animal silvestre, não objeto de entretenimento ou espetáculo. A cena corta para o rancho Haywood, quando Otis (Keith) explica ao filho OJ (Daniel) que não precisará mais vender cavalos para manter a propriedade, pelo salário como treinador de cavalos para cinema, televisão e publicidade.
Até o improvável acontecer: Otis é atingido por uma moeda caída do céu, durante uma “chuva” de detritos, que o mata quase de maneira instantânea. 6 meses depois, OJ e a irmã Emerald (Keke) persistem vendendo cavalos para o empresário Jupe (Steven), dono de um rancho cenográfico e que proporciona espetáculos de avistamento de OVNIs. Há atrito entre ambos, disfarçado pela falsa simpatia expressada por Steven Yuen (quem viu Em Chamas sabe do que o ator é capaz de expressar apenas com o olhar), e não por Daniel Kaluuya, na postura circunspecta de quem somente retruca e murmura como o caubói clássico que é.
De volta ao rancho, OJ e Emerald testemunham o que aparenta ser um OVNI camuflado nas nuvens, antes de abduzir cavalos. Contudo, em vez de a possível presença alienígena ser encarada com medo e apreensão, é vista como a chance de os irmãos lucrarem com a venda de imagens ou vídeos exclusivos para sites especializados. O documento audiovisual é enxergado, com razão, com solenidade, da mesma maneira que a primeira imagem em movimento, capturada por Eadweard Muybridge no fim do século XIX e que exibe um jóquei negro cavalgando.
Além de ser restabelecida a imagem histórica do caubói negro, um personagem diminuído ou mesmo ausente na indústria de Hollywood e resgatado no faroeste revisionista Vingança e Castigo (2021), Não! Não Olhe ainda reforça o papel do artista na fabricação da imagem impossível. Seja o diretor hippie Antlers (Michael), seja o paparazzi preocupado com sua câmera e não com sua integridade física, seja Emerald na fonte fotográfica, o sacrifício para capturar a imagem perfeita é o aspecto de maior beleza na narrativa. Ainda mais depois de Jordan Peele criar sequências memoráveis, ora por conta da sinergia existente entre Daniel Kaluuya e Keke Palmer, ora pelo acerto na decupagem (de forma simplista: a seleção de planos para contar a história).
Durante certo acontecimento, a câmera permanece justíssima ao rosto de OJ no interior da caminhonete, enquanto espia cautelosamente em direção ao lado de fora. Noutro momento, Jordan Peele utiliza planos gerais (dos cenários externos) para exibir a execução do plano dos personagens para tentar obter uma imagem impossível. E a combinação da cena com a trilha sonora edificante e heróica de faroestes clássicos enriquece a experiência, em nível direto e emocional e em nível metalinguístico, ao restituir, em OJ, o caubói que o cinema negou ao espectador.
Entra ainda a questão do olhar e de como Jordan Peele debate sobre a curiosidade voyeur e inata ao espectador de cinema. Se pagamos caro no ingresso para permanecer 2 horas atentos e em silêncio (os educados), é porque a experiência do cinema é fascinante à visão. Porém, Não! Não Olhe desafia esse princípio ao criar um antagonista que responde a quem o vê, o que, de certa maneira, está relacionado ao chimpanzé do início e ao cavalo obrigado a enxergar-se nos sets de filmagem. A punição violenta por olhar não é muito diferente, por exemplo, da punição aos banhistas em Tubarão por agitarem as águas onde habita o maior dos predadores. O que muda é o sentido no aspecto sensorial, pois o objetivo é o mesmo: a ambição capitalista, que também move os co-protagonistas, e torna o empreendedor Jupe no Prefeito de Amity deste século.
Não poderia encerrar a crítica sem celebrar a atuação de Keke Palmer, cuja personalidade extrovertida, expansiva e barulhenta valoriza a menor reação de Emerald através do efeito contrário do que revela no momento de introversão. É, hoje, a minha atuação favorita de 2022, em um dos meus filmes favoritos do ano. Um terror que discute o papel do cinema na história e na criação de história e a atração do espectador através do olhar, sem, em momento algum, envergonhar-se da natureza da proposta narrativa que, se apresentada por um roteirista que não à altura de Jordan Peele, seria descartada de plano por produtores cegos às possibilidades infinitas da arte do impossível.
Não! Não Olhe está em exibição nos cinemas
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.