Os vencedores do Oscar Jessica Chastain e Eddie Redmayne em um filme de assassino em série inspirado em uma história real
Depois de a tradução da Netflix brasileira preterir A Boa Enfermeira em favor de O Enfermeiro da Noite, ressaltando os crimes cometidos por Charles Cullen no lugar da coragem de Amy Loughren, percebemos o quanto o brasileiro valoriza o sensacionalismo em detrimento do resto. Ainda que o thriller dramático de Tobias Lindholm (do indicado ao Oscar Guerra) esteja interessado na relação construída entre os dois personagens centrais, mais do que em surpreender o espectador, que já sabe, desde a cena inicial, que Charles é o assassino (embora a proporção de seus crimes apenas chegue ao conhecimento nos letreiros anteriores aos créditos finais).
Com roteiro de Krysty Wilson-Cairns, baseado no livro de Charles Graeber, a história apresenta Amy como uma enfermeira sobrecarregada no hospital onde trabalha, à espera de a duração do contrato de trabalho lhe dar a possibilidade de ter plano de saúde para que possa cuidar de um problema cardíaco congênito e que pode lhe custar a vida. Movimentar um paciente sobre a maca pode lhe provocar arritmia e falta de ar. Por esse motivo, Amy celebra a chegada de Charles, pois, além de o introvertido enfermeiro ser prestativo no hospital, também preenche as lacunas da vida dela como amigo. Entretanto, a morte de uma mulher prestes a receber alta inicia uma investigação policial, administrativa e da enfermeira, que desconfia que Charles seja o responsável por administrar criminalmente insulina na paciente até causar sua morte.
O Enfermeiro da Morte é um típico filme de assassino em série, mas desenvolvido de forma anômala: não há como haver thrills, ou seja, sobressaltos, tensão e correria quando o ato provocaria a morte de Amy. Em seu lugar, a exploração da doença cardíaca dela como uma bomba relógio cinematográfica sempre na iminência de explodir. Para auxiliar na construção de apreensão, a edição sonora mistura os sons dos batimentos cardíacos dos pacientes no monitor com a irregularidade do ritmo do coração da protagonista, e até coloca o espectador a se questionar sobre a necessidade de cenas que tem Amy subindo correndo as escadas do hospital, como se a vida dela dependesse disso. Na realidade, Amy ia somente conferir se os soros foram adulterados na dispensa. Ela poderia até ter pegado o elevador, embora o roteiro tenha achado melhor fabricar uma tensão onde não deveria haver.
O roteiro também explora a convivência dos hospitais com os crimes cometidos. Não por ação, mas por omissão. A fim de evitar as ações judiciais dos familiares sobreviventes e a publicidade negativa que poderia existir, a administração lavava as mãos, demitindo Charles, em vez de denunciá-lo para que fosse punido, deixando o caminho livre para o enfermeiro cometer crimes noutros hospitais. Dessa forma, é possível enxergar a personagem de Kim Dickens igualmente como vilã, do mesmo modo que víamos Tilda Swinton em Conduta de Risco, por agir somente em favor dos interesses corporativos e capitalistas, em detrimento de estancar os crimes praticados por Charles.
A propósito, o dinamarquês Tobias Lindholm realiza uma crítica óbvia ao sistema de saúde norte-americano: a questão do plano de saúde, da falta de um Sistema Único de Saúde (por mal gerido que seja o nosso) e o orçamento hospital que dificulta até mesmo a contratação de profissionais. Contrariamente, o roteiro retrata sob luzes boas a dupla de policiais Tim (Noah Emmerich) e Danny (Nnamdi Asomugha), determinados a desvendar o crime, nem que precisem usar Amy de meio para prender Charles.
Por falar neles, a relação construída é uma das mais intrigantes que vi no ano: no início, a presença de Charles assegura a tranquilidade de Amy; depois, esta deve fingir a ignorância quanto aos crimes cometidos, obrigando Jessica Chastain a adicionar dubiedade e urgência à composição esgotada da enfermeira. Enquanto isso, Eddie Redmayne atua dentro de um limiar em que não percebemos maldade ou crueldade em Charles (auxiliado pela montagem que deixa de fora os momentos em que poderia sentir prazer pelos crimes cometidos). A atuação também tem a boa decisão de revelá-lo como um sujeito que parece realizar um esforço imenso para socializar, menos perto de Amy, tornando ainda mais inflamável a sua relação com ela.
A fotografia de Jody Lee Lipes adota o verde como matriz, a cor predominante das fardas dos enfermeiros, mas também sugestiva da doença e da maldade que tem acontecido nos corredores hospitalares. Isto reforça a hostilidade da narrativa de O Enfermeiro da Morte, um dos exemplos de porque Hollywood acerta quando importa diretores estrangeiros e lhes dá liberdade criativa para dar vida a gêneros e subgêneros antes já explorados à exaustão.
O Enfermeiro da Morte estreia no catálogo da Netflix em 26 de outubro de 2022.
Filme assistido no 47º Festival Internacional de Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.