Com grandes poderes vêm grandes destruições
Gêneros cinematográficos existem por razões comerciais. Assim que a indústria percebe que um certo conjunto de convenções narrativas e estilísticas atraiu público e faturou alto, começa a produzir, em ritmo industrial, produções similares com a ambição de aproveitar essa onda. Contudo, igual a todas as demais, a onda perde força antes de chegar na orla da praia. Mas a indústria tem algumas cartas na manga antes do inevitável fim: a sátira, a metalinguagem, a autorreferência, a homenagem. Isto aconteceu com o faroeste spaghetti na Itália ou com a comédia policial e o slasher nos Estados Unidos. E, tomados os filmes e as séries recentes, tem ocorrido com a Disney / Marvel Studios. Enquanto isso, do outro lado de Los Angeles, a Warner / DC tem enfrentado problemas atrás de problemas quando o assunto é fantasias de super-heróis.
Não estou me referindo aos assuntos dos bastidores, nem vou ignorar sucessos comerciais de Batman, Coringa ou mesmo Aquaman, que adere ao conjunto de convenções citados do início ao fim, mas a questão é a falta de timing. Ela provocou a afoiteza do estúdio em tentar aproveitar o êxito de público e crítica da Marvel Studios, com sucessos moderados, embora nunca à altura da ambição do estúdio. Já se passaram cerca de 10 anos após O Homem de Aço, com muito tempo e oportunidade para refletir qual o rumo a Warner / DC deve tomar, até vir Adão Negro, a prova cabal da experiência trôpega e cambaleante do estúdio no subgênero de heróis.
É que Adão Negro é filme de origem e de equipe, de herói e anti-herói, simplificando e adotando o pior que há em cada uma fórmula. Com o roteiro escrito por Adam Sztykiel (da animação Scooby! O Filme) e refinado por Rory Haines e Sohrab Noshirvani (de O Mauritano), dupla que deve ter conferido ao filme o subtexto político que tem, a história de Adão Negro tem início há muito, muito tempo no reinado do faraó Aquenáton, déspota que escravizou o povo de Kahndaq a fim de minerar o eternium com que pretende moldar a coroa de Sabbac, que lhe daria poder absoluto. Ao menos até o jovem Teth Adam rebelar-se e ser escolhido como o campeão do Conselho dos Magos, transformando-se em Adão Negro (Dwayne Johnson) e derrotando o faraó. Contudo, a ação imprudente e vingativa obrigou o Conselho dos Magos a aprisioná-lo por séculos e retirar seus poderes.
Corta para os dias atuais: durante a escavação liderada pela arqueóloga Adrianna (Sarah Shahi), em busca da coroa de Sabbac, a personagem não tem alternativa senão pedir ajuda a Teth Adam, despertando-o na Kahndaq que não reconhece mais. Diante da presença do meta-humano, a chefona Amanda Waller (Viola Davis) convoca a Sociedade da Justiça (não confundir com a Liga), composta por Gavião Negro (Aldis Hodge), Senhor Destino (Pierce Brosnan), Esmaga Átomo (Noah Centineo) e Ciclone (Quintessa Swindell) para apreender Teth Adam.
Ufa! (Isto porque não mencionei a Intergangue ou os planos de determinado personagem em reviver o regime de Aquenáton).
Como história de origem, Adão Negro tenta ser econômico o bastante para entendermos a razão universal que leva Teth Adam a ser quem é, inclusive ter a raiva que tem. Da mesma forma, como um filme de equipe, aproveita atalhos genéricos: Esmaga Átomo é o alívio cômico que tem uma quedinha por Ciclone, enquanto o impulsivo Gavião Negro encontra equilíbrio no racional Senhor Destino. Por fim, como história de herói e anti-herói, Adão Negro aposta no bê-á-bá para não alienar o espectador. Teth Adam não tem problema em matar os vilões da Intergangue, porém é nobre em defender mãe e filho (Amon, interpretado pelo carismático Bodhi Sabongui). Além do mais, diante do vilão, cuja aparência demoníaca basta para compreender sua pretensão megalomaníaca e seu maniqueísmo, as ações de Teth Adam parecem até razoáveis e aceitáveis.
Em contrapartida, a história de origem é prejudicada pela decisão do roteiro em trapacear o espectador com um recurso repetido em produções recentes (vide A Mulher Rei, A Escola do Bem e do Mal ou O Samaritano): o flashback incompleto, em que, no clímax, temos informações adicionais que ainda não haviam sido apresentadas e que modificam a forma de enxergarmos os personagens. Apenas não é pior do que a citação jogada no meio do roteiro da Pedra da Finalidade, para justificar a confiança de Adrianna em Teth Adam. Já no tocante ao filme de equipe, a quantidade de referências impede a narrativa de ter uma identidade própria. Algumas das referências vêm das HQs, da competição entre a Marvel e a DC que gerou heróis parecidos: Gavião Negro tem o temperamento de Falcão e a riqueza de T’Challa, Senhor Destino é uma versão sênior do Doutor Estranho, enquanto o Esmaga Átomo até tem a mesma função cômica do Homem-Formiga, que dirá os poderes.
“Ah, Márcio, mas a DC criou antes da Marv…” Eu não faço a mínima ideia de quem veio primeiro e isto não é relevante na análise cinematográfica. Ao assistir aos personagens, somente lembro da contraparte deles no estúdio rival. Pior: com o tempo reduzido para serem desenvolvidos adequadamente (como T’Challa, Doutor Estranho e Homem-Formiga puderam ser), você tem só uma versão genérica com uniformes e poderes sutilmente diferentes.
Há também referências a O Exterminador do Futuro 2 (a relação de Amon e Teth, do tipo John Connor e T-800), X-Men (a nave que decola de uma propriedade que parece a Mansão X), Vingadores: Guerra Infinita (um personagem acerta o torso quando deveria ter mirado na cabeça) ou Senhor dos Anéis (com a Torre de Sauron do mundo invertido). Esta falta de inspiração alcança a direção de Jaume Collet-Serra (de Jungle Cruise), que parece ter esquecido que Zack Snyder não está mais na parte criativa da Warner / DC já que repete o mesmo plano em câmera lenta daquele diretor como alternativa à ação acelerada.
Entretanto, é com o poder extremo do personagem-título que Jaume não consegue lidar. É um problema de filmes com personagens superpoderosos no mundo em que humanos são similares a formiguinhas. A destruição hecatômbica que havia em O Homem de Aço é transportada a Khandaq, com dezenas, centenas ou milhares de pessoas morrendo enquanto Adão Negro e Gavião Negro brigam em razão do ego, à frente da fotografia empoeirada e estereotipada do Oriente. Ao mesmo tempo, o roteiro tenta ser relevante com temperos políticos, a exemplo da crítica ao totalitarismo e ao imperialismo oportunista, que ignora os conflitos provocados pelo capitalismo e só volta o olhar a países asiáticos, africanos ou do leste europeu quando ameaçam a balança econômica ou a geopolítica mundial. Parece apenas rascunho, abandonado no meio do caminho. A atuação de Dwayne Johnson é mais do mesmo, enquanto o restante do elenco não tem a mínima possibilidade de criar dramas convincentes para os personagens industrializados que interpretam.
Adão Negro é sintomático da tentativa de ser muita coisa. É uma confusão parecida com o personagem-título que, vulnerável ao eternium tal como o Super-Homem é à kriptonita, apenas é derrotado caso seja convencido a falar Shazam!.
Imaginem só, o homem mais poderoso do mundo sendo derrotado pela própria boca.
Adão Negro está em exibição nos cinemas.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.