Marilyn Monroe tem sua imagem vilipendiada em um filme que, por mais que não se proponha a ser biográfico, reforça toda a exploração que a atriz sofreu em vida.
Por Thiago Beranger.
Em 2019 veio ao mundo um disco que já considero histórico na música popular brasileira. Emicida lançou seu “AmarElo”, um álbum que fala sobre o reconhecimento de desigualdades e superação delas através da lógica do afeto. Na canção que dá nome ao disco, gravada juntamente com as cantoras Majur e Pabllo Vittar existe um trecho que copio na íntegra abaixo:
“Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar um pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir”
AmarElo – Emicida, 2019.
A letra de Emicida fala sobre uma situação muito comum vivida por pessoas em posição de vulnerabilidade social: muitas vezes elas são colocadas em um lugar limitante, ligado às suas opressões, mesmo quando ascendem social/economicamente. Isso fica evidente quando a grande mídia só dá espaço a intelectuais e artistas negros quando é pra falar sobre racismo, ou quando mulheres só possuem espaço para falar sobre situações de misoginia. Esses temas são absolutamente importantes, mas prender a eles quem passa por essas situações, mesmo que com boa intenção, é fazer com que as cicatrizes nunca se fechem. Com que a imagem e as vivências dessas pessoas estejam eternamente associadas aos seus piores traumas.
Mas o que tudo isso tem a ver com a nova produção da Netflix, “Blonde”, dirigida pelo cineasta Andrew Dominik? Me parece que a intenção do diretor ao adaptar o livro ficcional que reimagina a vida de Marilyn Monroe, escrito por Joyce Carol Oates, é justamente a de discutir o que a indústria do entretenimento, e a sua própria história de vida, fizeram com a imagem da atriz. Marilyn foi objetificada, transformada em símbolo sexual, subestimada artisticamente e relegada a um lugar de vulgaridade no qual permanece até hoje, em certa medida. “Blonde” faz tudo isso novamente, talvez para ilustrar e até criticar esse processo, mas Dominik não tem a sensibilidade necessária para perceber que ao escolher essa abordagem ele está vitimando novamente a sua protagonista.
Aliás, não dá pra dizer se ele efetivamente não tem sensibilidade para entender o que faz ou se há uma escolha deliberada em fazê-lo. Esse é um trabalho carregado de fetichismo, dentro e fora do universo diegético. Há o fetiche por uma hiper estilização da imagem, que é trabalhada até às últimas consequências com a justificativa de representar uma espécie de pesadelo de 2h40. Há o fetiche pela própria personagem e por suas representações icônicas, que o diretor faz questão de reproduzir. Há o fetiche pelo corpo da atriz Ana de Armas, que protagoniza o longa sendo super exposta de diversas maneiras em cena. Há o fetiche pelo choque, pela polêmica, ao extrapolar fatos existentes na biografia de Marilyn Monroe e transformá-los em momentos pesados. A personagem se torna objeto de todos os homens à sua volta. Não faz valer suas vontades, não tem voz, não tem a capacidade de reagir a nada do que lhe acontece. Está condicionada desde o princípio a viver sob a sombra da ausência paterna, à qual o filme atribui vários dos problemas em tela.
Além dos personagens com quem ela precisa lidar digeticamente, Marilyn também se torna objeto para mais um homem: o próprio diretor. Ele a utiliza em sua obsessão por obter imagens impactantes, em seu virtuosismo que, em vários momentos, se mostra vazio de sentido. Ele a utiliza para destilar seu desprezo pela própria obra de Monroe, ainda que pareça, de uma forma doentia, admirar sua figura. Ele simplesmente se utiliza de tudo o que ela viveu – e não viveu – de pior, sem lhe oferecer qualquer alento em uma masturbação cinematográfica de viés sádico. Fica bem claro que Dominik precisa se tratar.
Esse sadismo se manifesta principalmente na repetição de padrões. A Marilyn de “Blonde” é uma personagem que possui um “não-arco” de evolução. Da criança que começa o filme, até a mulher amargurada e machucada que termina, não parece haver qualquer desenvolvimento que tire a personagem do status inicial. É até ruim de assumir, como alguém que costuma respeitar muito o trabalho dos cineastas nesse sentido, mas é difícil terminar “Blonde” em uma sentada só, o que tem raiz no desconforto causado pelas desgraças vividas pela protagonista mas também pela confusão narrativa proposta. Essa escolha de roteiro acaba gerando um trabalho, que para além de problemático, soa cansativo. Não dá nem pra chamar direito de história a sucessão de acontecimentos que são jogados em tela. É um apanhado de momentos. Uma ideia de cinema mais hermética que não é por si mesma um problema, mas que com certeza dificulta o entendimento de um público mais amplo. Fica claro o que Andrew quis dizer quando expôs que “estava mais interessado em imagens do que na realidade”.
Nesse sentido, é inevitável a comparação com outro trabalho parecido, também de 2022. O “Elvis” de Baz Luhrman também se propõe a debater muito mais a “pessoa jurídica” do biografado do que a “pessoa física”. Também é um filme que busca refletir sobre como a indústria midiática construiu uma imagem para o seu protagonista que enclausura e oprime o indivíduo que há ali por trás. A diferença entre os dois trabalhos é que um denuncia e discute essa realidade, enquanto o outro acaba por atualizá-la. Marilyn merecia respeito. Merecia ser tratada com dignidade. Se em vida a sociedade, a mídia e a indústria não a valorizaram da maneira que deveria ter sido, pelo menos postumamente isso poderia acontecer. Não foi dessa vez. Sua imagem foi mais uma vez vilipendiada e sua memória desrespeitada por mais um homem, para dizer o mínimo, irresponsável.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.