Lena Dunham adapta livro popular de época com toques de Fleabag
Não li a obra de Karen Cushman em que se inspirou o roteiro escrito e dirigido por Lena Dunham (Girls), mas a impressão que tive desta comédia feminista de época era a de assistir à versão adolescente de Fleabag por muitos motivos. Primeiramente, a posição questionadora dos valores tradicionais da sociedade do período, que obriga os pais a lhe darem em casamento para quitar dívidas criadas pelos hábitos e pela gestão mal-sucedida do dinheiro herdado pelo pai da esposa. Depois, o elemento formal da quebra da quarta parede, pois Catarina se dirige ao espectador como a narradora da história, colocando-se em um momento futuro e levando o espectador a conhecer esse tempo específico na vida da pré-adolescente, logo depois de menstruar. E, acidentalmente ou não, a escalação de Andrew Scott, que aqui interpreta o pai de Catarina.
Interpretada por Bella Ramsey (a Lyanna Mormont de Game of Thrones), Catarina é um espírito livre que preferiria atrasar o relógio cronológico e biológico para continuar usufruindo a liberdade, brincando com as crianças de sua idade e realizando travessuras na acolhedora Stonebridge. Só que a idade chega e, com esta, a responsabilidade de casar com um homem rico cujo dote possa aliviar as dívidas contraídas por Sir Rollo, que aguarda a vinda do herdeiro com Lady Aislinn (Billie Piper). O roteiro acompanha as desventuras de Catarina a cada pretendente que lhe é apresentado – os quais despacha com senso de humor e espirituosidade – e evita transformar seu pai no vilão da história. Quando muito, Sir Rollo é ilustrado como um homem inconsequente que não percebe colocar em risco a felicidade de sua filha.
Formalmente, a direção de Lena Dunham é anacrônica. Enquanto estamos no território do cinema de época, com a pompa esperada do design de produção e dos figurinos, sobre este mundo está a camada contemporânea, com muitas canções pop e gírias e expressões características dos pré-adolescentes de hoje. A decisão da direção é coerente – repito, não posso dizer se com o material original – ao substituir a solenidade e sisudez habituais de dramas de época em favor da engenhosidade da comédia, facilitando a comunicação com o público-alvo da narrativa, jovens que têm a cabeça de Catarina e que vivem no mundo povoado por redes sociais.
Aliás, a quebra da quarta parede ainda torna a experiência de Catarina em um diário, bem ao estilo dos stories do Instagram ou do TikTok, em como a protagonista confidencia a sua vida a estranhos, em busca de quem simpatize com sua jornada. Isso ajuda a contrapor o tema ultrapassado, pois os casamentos arranjados são distantes da realidade da sociedade brasileira. E, mesmo que Lena Dunham esteja utilizando o cinema de época para revelar o patriarcado ou o sexismo persistente no mundo de hoje, apoia-se em elementos ineficazes (ao menos do ponto de vista do homem que vos escreve; pode ser que a crítica feminina e feminista pode expor pontos cego que não pude notar na minha).
De todo modo, gosto de como o roteiro é articulado entre a miríade de subtramas que comungam dos mesmos valores em alusão à interseccionalidade tão debatida nos dias de hoje: o tio George (Joe Alwyn, de A Favorita) casa-se com uma mulher mais velha e rica (Sophie Okonedo), o seu melhor amigo (Dean-Charles Chapman) é gay mas não tem meios de revelar dentro da sociedade, a relação do pai com a mãe e a obrigação dela de gestar filhos. É agradável assistir ao amadurecimento e aprendizado de Catarina, enquanto toma conhecimento de uma realidade além da gaiola onde habita, permitindo-lhe criar a empatia para lidar com cada aspecto de sua vida.
Além do mais, a narrativa ainda conta com a atuação de Bella Ramsey, uma atriz dinâmica e carismática, cuja jovialidade contagia o espectador e cujos questionamentos colocam-no a seu lado, não atrás dela, acompanhada de um elenco coadjuvante competente e igualmente cativante (Andrew Scott, por exemplo, é o tipo de sujeito que é difícil de antipatizar, mesmo que tome decisões erradas e contraditórias dentro da narrativa). Assim, Catarina, A Menina Chamada Passarinha, além de retrato de época com o dedo contemporâneo, é ainda retrato afetivo de hoje a partir do olhar carinhoso para o ontem.
É o tipo de filme que acerta exatamente onde deseja, e mesmo quando a conversa recai em temas já superados, é o equivalente a escutar a avó lembrando de seus tempos idos. Você pode até não se identificar, embora ainda escute com atenção o que esta tem a dizer.
O filme está disponível no catálogo da Amazon Prime
Filme assistido no 47º Festival Internacional de Cinema em Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.