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Com Amor e Fúria

Claire Denis constrói mais um relacionamento tóxico nesse drama com tons de suspense que mostra que as inseguranças e a intensidade estão presentes em qualquer fase da vida.

Por Thiago Beranger.

Um dos filmes da diretora Claire Denis lançados esse ano foi a abertura da Mostra de São Paulo para mim. “Com Amor e Fúria” abre com uma sequência que destoa completamente do restante do filme. Um casal maduro curtindo um dia de sol em uma praia paradisíaca. Em menos de 5 minutos o encanto é quebrado. O cenário de céu azul ensolarado e idílico dá lugar à poluição e às nuvens de uma Paris cinzenta. As coisas não parecem bem. E de fato, demora pouco para que haja no longa um primeiro sinal concreto do que estaria por vir. 

Em dado momento, ainda nos primeiros 15 minutos de exibição, a personagem Sara (Juliette Binoche) fica completamente abalada ao ver, de longe, pela rua, uma figura misteriosa. Nesse momento, Denis pontua com todos os recursos formais possíveis a desestabilização de sua protagonista. A trilha sonora entra em cena com uma música melancólica, a câmera passa a se comportar de maneira instável, os cortes passam a ser bruscos, os enquadramentos são irregulares e a própria performance da premiada atriz francesa se modifica. Daí pra frente é só ladeira abaixo para o casal composto por Sara e Jean (Vincent Lindon), o mesmo que vimos viver momentos felizes naquela sequência de abertura.  

A marca de “Com Amor e Fúria” é nos fazer viver esse conflito junto com os personagens. Um triângulo amoroso com diversas nuances. A figura misteriosa que desestabiliza Sara se revela como François (Grégoire Colin), seu ex-marido que também mantinha uma relação de amizade e trabalho com Jean e agora reaparece depois de anos ausente. Essa terceira pessoa é tratada quase como uma assombração em suas primeiras aparições. É só a imagem de François surgir em tela para que haja alguma intervenção formal que gere um clima mais tenso. Câmeras lentas, a música tema já citada, enfim, o próprio filme se desestabiliza ao encontrar com esse homem que demora algum tempo de exibição para se tornar de fato um personagem. Antes ele funciona como uma entidade, uma presença misteriosa que gera efeitos visíveis na dupla de protagonistas.

Vale a pena falar mais especificamente sobre esses protagonistas. A figura de Jean, em especial, me chama a atenção. Um homem cheio de inseguranças, que tenta restabelecer a sua vida depois de passar um tempo preso por um crime que não sabemos qual foi. Depende financeiramente de sua esposa e não lida bem com isso, ao ponto de aceitar voltar a trabalhar com a figura que põe em risco o seu casamento. Pai ausente, que delega a criação de seu único filho à sua mãe idosa – aliás, vivida pela excelente Bulle Ogier – para viver, há algumas horas de distância, sozinho com sua segunda esposa em Paris. Apesar do quadro pintado não ser muito favorável, Denis não faz de Jean um personagem totalmente patético. É um homem mediano, frágil e com suas frustrações.

Sara também possui seus conflitos. É uma mulher independente e de sucesso profissional, madura, sensual, ativa mas que é tirada do prumo pela presença do ex-marido, ao ponto de colocar o seu casamento aparentemente feliz em risco. O efeito que François gera em Sara é absolutamente apavorante, uma crise de ansiedade misturada com um tesão incontrolável. Fica evidente que aquilo não faz bem, mesmo havendo um desejo genuíno. Denis também olha para essa personagem de maneira complexa. E é no embate entre as inseguranças dos dois protagonistas que o filme cresce.

As famosas “DRs” são impecáveis em texto e na maneira como são filmadas. A cineasta consegue transpor para as linhas do roteiro as nuances dessa relação desgastada e de como, mesmo já em uma idade mais avançada, os personagens continuam manifestando comportamentos imaturos e tóxicos. Binoche e Lindon estão absolutamente magnéticos em suas performances e a diretora faz de tudo para potencializar as atuações. A câmera fecha bastante nas expressões dos atores, em detalhes de suas performances, evidenciando assim o bom trabalho ao mesmo tempo em que consegue transmitir através desse aperto o sufocamento vivido pelos personagens dentro da relação. É tudo muito intenso. Denis movimenta a sua câmera de maneira virtuosa, como se o processo de decupagem estivesse sendo feito ali mesmo, no momento em que a cena acontece. Ela praticamente entra na briga, nos levando junto e nos fazendo viver cada sentimento mal resolvido, cada pontada das frases cruéis que um fala pro outro quando se atacam.

No final das contas, é libertador sair daquele apartamento no qual Jean e Sara vivem e perceber que mesmo depois de tudo ainda existe a possibilidade de recomeço. Depois de tanto desespero, o filme pelo menos oferece a seus personagens esse alívio. No caso de Sara isso acontece ainda antes dos créditos finais. No de Jean em uma espécie de cena pós-créditos. A vida não perde a intensidade com o tempo. As paixões, as inseguranças, as confusões ainda existem mesmo quando a maturidade já está presente. Faz parte.

Filme assistido na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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