Existe um debate saudável em Club Zero, ou melhor, dois: a discussão a respeito de transtornos alimentares na juventude e de como nós somos influenciados pelo negacionismo científico. Esses temas estão envelopados em um formalismo sufocante, mas que resultou na minha pior experiência dentre os 21 filmes da seleção oficial do Festival de Cannes.
A narrativa dirigida e escrita por Jessica Hausner, auxiliada por Géraldine Bajard, inicia com um aviso de gatilho apropriado (não custa nada ter a sensibilidade de incluí-lo), antes de cortar para a sala de reunião onde a professora Novak (Mia Wasikowska) apresentará o seu programa alimentar para sete jovens no equivalente ao ensino médio. O ponto de partida da Sra. Novak é admirável, pois é introduzido dentro de um contexto sociopolítico que instiga a juventude: a proteção ao ambiente, a redução do consumismo e desperdício, a ansiedade e o autocontrole indispensável para não deixar tal doença determinar o quê, quando e como comemos. A proposta de conscientização alimentar da Sra. Novak é radical e tende, enfim, ao Clube Zero, que acredita na capacidade de viver sem alimentação (embora deboche dos que se alimentam de prana como esoterismo).
O roteiro é ilustrativo em revelar a suscetibilidade de pessoas desestruturadas em buscar o acolhimento faltante na família ou nos grupos sociais de que participamos. Desta maneira, é fácil que a Sra. Novak infunda a ideia absurda de que o corpo humano pode sobreviver sem comer na cabeça de jovens que aceitam isso como um dogma, como se fossem integrantes de um culto. Eles não procuram uma alimentação consciente – embora seja a justificativa de início -, buscam um grupo em que pertençam e não sejam julgados. Não são diferentes de quem acredita na existência de homens-lagarto, ou de organizações secretas abortistas e globalistas que raptam fetos para produção de adrenocromo ou que a terra é plana (aliás, a este respeito, recomendo o documentário A Terra é Plana, que justifica esse fenômeno atual de crer em algo apenas pela ânsia de pertencer).
Ou seja, o princípio de Club Zero é louvável, é a forma como o aborda que é problemática. A câmera angular está posicionada no canto superior dos ambientes antes de descer ao nível dos alunos, não com o desejo de compreendê-los, mas de observar o desenrolar da ação como se este fosse um experimento social. A inexpressividade dos atores jovens, que é um elemento estilístico de um cinema distante e mais reflexivo, contribui para a ausência de qualquer envolvimento do espectador com os personagens, senão com os pais, pois não sabem como reiniciar o cérebro dos filhos para que pensem com a razão. Talvez por terem atingido um ponto de não retorno, em que fatos ou argumentos não bastam para desfazer o dano permanente (ei, até os dias de hoje, algumas pessoas temem que o Brasil se tornará um ditadura comunista).
Se não estamos diante de personagens, mas de experimentos, nosso julgamento está entre sentir piedade e considerá-los estúpidos, um mal da superioridade que não os reintroduz na sociedade, mas apenas os afasta. E o caso mais extremo é o da Sra. Novak, pois, ao ver da narrativa, não é uma pessoa má que pretende manipular os pontos fracos das pessoas para obter seus objetivos, mas é a primeira vítima de seu próprio método. O que é estranho, pois a palidez de Mia Wasikowska nem de perto assemelha-se à palidez cadavérica dos alunos, muito menos provoca consequências físicas na personagem. A contradição não se mantém ao considerar o estado de Fred, que definha após dias e semanas sem comer, com ela que continua sendo, bem, Mia Wasikowska. Para piorar, a narrativa ainda introduz uma relação romântica abusiva entre professora e aluno que apenas existe, não é objeto do olhar nem do juízo da direção.
Eu até gosto desta ou daquela ideia, como a máquina automática que somente vende carne no palito, ou o sentido dúbio da cor verde: pode ser a cor da natureza em destaque no lugar especial da Sra. Novak, pode ser a cor da doença expressada no hospital, pode ser ainda a cor da repulsa à alimentação (você esqueceu qual a cor da Nojinho de Divertida Mente?). Já a edição sonora torna repulsivo o ato de comer, a partir dos sons incômodos dos talheres contra o prato ou da mastigação dos personagens. Esses são elementos pontuais que mal atenuam o que Club Zero tem de pior: a capacidade de fazer com que não nos importemos.
Não, minto, pior mesmo é a refeição feita por Elsa diante dos pais. Deixo à imaginação ou à curiosidade do leitor descobrir do que estou falando.
Crítica escrita durante a cobertura do Festival de Cannes 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.