Caso o diretor francês Robert Bresson tivesse dirigido uma comédia romântica colorida seria semelhante a Fallen Leaves, do finlandês Aki Kaurismäki (de O Porto e O Outro Lado da Esperança). Isto porque Aki caminha na direção oposta ao que é feito no gênero e evita a dramaticidade, o sentimentalismo e o envolvimento emocional, em troca de composições meticulosas e atuações desdramatizadas, que mal esboçam reação enquanto recitam os diálogos presentes no roteiro do diretor.
O início estabelece o cotidiano de Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen): ela é uma atendente de supermercado que furta (“furta”) itens fora de validade para levar para casa, e ele é um profissional da construção civil que bebe durante o emprego. Em um pub, trocam olhares que não evoluem. Depois, encontram-se e vão ao cinema, embora Holappa perca o número de telefone de Ansa. Enquanto isto, administram a situação financeira precária e a entrada e saída de empregos.
A desdramatização, que aparece ao público na forma de apatia ou zumbificação, é ilustrado no filme de Jim Jarmusch, Os Mortos não Morrem. O espectador pode até se questionar por que Ansa, Holappa e os demais personagens atuam inexpressivamente, e ignorar que isto é um traço estilístico do autor. A intenção é reprimir a relação emocional imediata, fruto de um sorriso largo, uma risada alta ou um choro copioso, para que, quando introduzir esta ou aquela emoção discreta, o espectador perceba que esta pôde tirar os personagens daquela inércia sentimental.
Ansa ou Holappa parecem sintomas da sociedade adoentada e insensível, provocada pelas notícias nas rádios referentes à invasão à Ucrânia e pela questão trabalhista. A flor murcha e cabisbaixa desenhada na vidraça é equivalente à luminária que Ansa tem em sua casa, e ambas mal percebem as cores que possuem. Um padrão que passa despercebido ao duo de personagens, mas não ao espectador, que percebe a identidade entre a paleta de cor no vestiário de Holappa e na casa de Ansa. A propósito, o design de produção é admirável no jogo de cores quentes e frias: Ansa utiliza um casaco azul sobre roupas floridas e quentes; ao saírem para um restaurante, Ansa e Holappa pedem bebidas coloridas com pirulitos na forma de sushi. Há uma ingênua timidez no início do relacionamento que o torna agradável de acompanhar, ainda que não ofereça as recompensas a que estamos habituados.
Na realidade, ambos os personagens são profundamente tristes. Expressam isto de modo idiossincrático: Holappa questiona-se se é deprimido porque é alcoólatra ou se é alcoólatra porque é deprimido, uma óbvia remissão à ideia contida em “o ovo e a galinha”. Já Ansa, ainda que tenha amigas com quem contar após ter sido demitida do supermercado ou de ter tido o azar de trabalhar para um traficante, está sozinha dentro de casa e o ato de desligar a energia, além da economia, indica uma mulher sem força para reagir.
Após os desencontros, o casal encontra-se, passa a noite junto, briga, sem que a direção quebre o estilo governante da encenação. É bonitinho, ainda mais na utilização de canções e na forma como a edição sonora materializa o que há no fora de campo – o atropelamento de um personagem, sugerido no som, não na imagem. Contudo, para ser um dos favoritos à Palma de Ouro ao menos obediente à grade crítica da revista Screen, aí é um tanto demais.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.