Quando pensamos em O Silêncio dos Inocentes ou Se7en, para citar somente os melhores exemplares dos thrillers policiais sobre assassinatos em séries, o foco está distribuído entre a questão procedimental e os elementos que margeiam o crime. Em vez do mistério acerca da identidade dos criminosos – no primeiro, sabemos quem é desde o início; no segundo, a irrelevância é tal que o personagem é chamado Fulano de Tal -, estes thrillers tratam como a investigação exige um preço dos policiais encarregados. Only the River Flows mantém tal princípio em mente, embora frustre quem busque algo mais.
Dirigido e co-escrito por Shujun Wei, ao lado de Chunlei Kang e baseado no livro de Hua Yu, o roteiro antecede as redes sociais, a popularização da internet e os mecanismos de busca. Na década de 90, em uma cidade rural chinesa, o cadáver de uma senhora idosa é descoberto à margem do rio. O detetive Ma Zhe (Yilong Zhu) não demora a identificar o principal suspeito: o filho de criação dela, um homem taciturno com deficiência intelectual. Entretanto, alguma coisa não se encaixa, ao menos para Ma Zhe, que enfrenta problemas familiares depois de a esposa grávida, em exame pré-parto, ter descoberto que o neném tem uma deficiência intelectual similar.
Shujun Wei estabelece uma obra atmosférica e com ênfase no procedimental, apesar de a cena inicial revelar somente a mão do assassino antes de degolar a vítima e criar a ideia de que haverá um mistério a ser desvendado. Até há, mas não o que pensamos ser. À medida que a investigação avança, os moradores da cidade tornam-se pessoas de interesse, porém com menor preocupação na associação com o crime do que em haver um relacionamento extraconjugal revelado.
Admiro a direção de fotografia de Zhiyuan Chengma, que recobre a cidade com um véu azul e sufocante, mantendo a câmera à distância da ação para que tenhamos a percepção direta e objetiva da investigação. A cena em que os policiais testam, em um lombo bovino, qual a arma branca pode ter sido utilizada no crime é uma de minhas preferidas em ilustrar a ação policial sem firulas hollywoodianas. São pessoas que estão realizando hora extra, enquanto testam instrumentos cortantes sem chegar naquele exato, mas no mais possível. Do mesmo modo, quando é determinado a um oficial que escute uma fita cassete, não há mecanismos informatizados ou automatizados para auxiliá-lo a não ouvi-la integralmente.
Com o andar da narrativa, o thriller procedimental é substituído pela obsessão de Ma Zhe de que pode não haver capturado o autor do crime. A questão familiar é confundida com a incapacidade de o personagem – neste sentido, também o espectador – perceber o que é real e o que é fabricado. Isto é escancarado durante o pesadelo de Ma Zhe. Apesar de a execução ser irrepreensível em não negar o flerte entre thriller e horror, narrativamente é questionável a sua utilidade, pois somente nos obriga a questionar tudo o que vimos.
O mistério, então irrelevante, passa a ser até onde confiamos no olhar de Ma Zhe. Dá para apreciar a cena em que Ma Zhe descarta, em um vaso sanitário após uma briga com a esposa, os pedaços de um quebra-cabeças, para momentos depois o quadro aparecer emoldurado na parede. Mas, para mim, é a evidência de que Only the River Flows é apenas mais um thriller que rejeita o gênero, ou a proposta inicial, em favor da metáfora que nem é construída com tanto esmero assim.
Uma pena, pois filmes iguais a O Silêncio dos Inocentes ou Se7en adorariam a companhia.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.