Em fevereiro, o diretor Kléber Mendonça Filho (O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau) escreveu um tuíte convocando pessoas a enviar registros fotográficos em cinemas de rua, para incluir em um projeto que estava produzindo. Levado por esta mensagem e por um ou outro comentário acerca do projeto, cheguei a crer que Retratos Fantasmas era uma obra exclusivamente sobre os cinemas de rua e a história de uma das mortes do cinema com o advento dos cinemas de shopping centers e multiplexes. Agora, pensar assim, parece-me reducionista.
Retratos Fantasmas é um diálogo íntimo do indivíduo realizado através da arte, do coletivo e da espiritualidade (religiosa e cinematográfica). É uma obra autobiográfica, mesmo que houvesse experiências particulares que tenham integrado o roteiro de seus filmes de ficção anteriores. É ainda um documento histórico e imagético do cinema recifense, porque há em Kleber o gene historiador da mãe combinado com a poesia de deduzir, na forma de palavras e imagens, o que representaram o Trianon ou o Art Palácio e o que representa, ainda que fechado, o São Luiz. Ao fim e ao cabo, é também um retrato urbanístico das mudanças que aconteceram no Brasil a partir dos anos 60.
Subdividida em 3 capítulos, a narrativa dedica o primeiro a explorar o apartamento no bairro de Setúbal, onde Kleber morou após o divórcio dos pais e fermentou o amor pelo cinema na produção de curtas-metragens que integram a reflexão espiritual narrativa (cinema nada mais é do que imagens-fantasmas de ontem, aprisionados em película ou digital). Nos capítulos seguintes, o ontem e o hoje são apresentados em imagens e vídeos de arquivo, associados à narração calculada e dessensibilizada de Kleber. A inflexão vocal é o modo de orientar os questionamentos de modo intelectual, deixando a emoção à cargo de imagens e de como reagem umas com as outras.
Para quem ama cinema, a exibição do cadáver de um cinema de rua é repleta de emoção, saudade e tristeza. Ao mesmo tempo em que é a negação da potencialidade artística, é o equivalente à morte da história da experiência coletiva de centenas ou milhares de pessoas que sorriram, choraram, emocionaram-se ou se empolgaram juntos durante a exibição de um filme. Chega e me desperta a memória de um ‘causo’ que vivi, que compartilho.
Em um domingo qualquer, fui ao Cine Passeio, cinema de rua de São Luís, assistir a Limite Vertical. Estava no balcão acompanhado de amigos e família. Em determinado momento, houve uma explosão no filme que chacoalhou a estrutura do cinema de tal modo que o teto do balcão caiu perto de mim (parte do isolamento acústico para ser exato). Era o cinema 4D antes de isso ser realidade, e essa história rendeu risadas durante semanas e até trecho em crítica.
Hoje, é somente uma loja multimarca de marca qualquer, uma crítica reforçada pela direção com o retrato da transformação dos cinemas em comércio e comércio religioso. Um fruto do capitalismo e da religião que avançam sobre as artes, tomando dela pedaços da identidade: a primeira, comoditiza a experiência artística e retira o charme de somente ir ao cinema, tornando-o subserviente ao ato de ir ao shopping; a segunda, retira o monopólio do pensar, que a arte incentiva, em prol de um pensamento de rebanho. Embora sejam experiências coletivas, não são mais as mesmas experiências coletivas que os cinemas de rua foram.
Gosto de refletir que é esse o motivo por que Kléber adicionou, à narrativa, as imagens de redes de farmácia que, de uns tempos para cá, aglomeraram-se nas ruas do tecido urbano das cidades com uma maior velocidade do que células cancerígenas. É um diagnóstico de quanto estamos doentes pela ausência de arte transformadora e um diagnóstico de que a cidade adoece sem a experiência coletiva de cinemas de arte e o abandono dos centros.
Ao conferir uma dimensão íntima e pessoal à história dos cinemas de rua de Recife, Kleber torna subjetiva a experiência de Retratos Fantasmas. Assim como cinemas de rua eram / são mais do que o espaço onde assistimos a filmes coletivamente, assim também a narrativa é maior do que desponta ser à primeira vista.
Na verdade, é uma carona de uber através da história, determinada não pelo algoritmo do aplicativo (ou seja, o pensamento objetivo e capitalista de tomar a rota mais rápida ou mais barata), mas pela rota cênica, a que tem maiores belezas, encantos e surpresas – nem que algumas pareçam saídas de um gibi de super-heróis.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.