Longa metragem de estreia do chileno Felipe Gálvez Haberle, The Settlers é um faroeste revisionista que adapta o tema central do faroeste clássico norte-americano – a conquista do oeste – à américa latina, após os colonos recém chegados da Espanha determinarem o que é seu e o que não é em detrimento dos povos originários que ocupam aquela região. É um período brutal e desumano, mesmo se o rancheiro estiver apenas realizando tarefas diárias: o erro na hora de montar a cerca que delimita uma propriedade pode provocar a amputação do braço e o assassinato a sangue frio por ter se tornoado inapto a ser mão de obra (apesar das súplicas “É apenas um braço”, implora antes de tomar um tiro fatal).
Contudo, “um homem a menos não é um problema, o problema são os índios”, explica José Menéndez (Alfredo Castro) a MacLennan (Mark Stanley), o escocês sobrevivente da guerra contra a colônia inglesa e agora mercenário do proprietário. MacLennan é enviado, com Bill (Benjamin Westfall) e o miscigenado Segundo (Camilo Arancibia), para encontrar o caminho mais rápido ao mar e estabelecer a dimensão do território de Menéndez contra a ameaça dos indígenas e os obstáculos que enfrentam. A missão é desculpa para a direção passear pela natureza do meio ambiente na fronteira entre Chile e Argentina, em oposição à natureza humana.
Quem realiza isso é o diretor de fotografia Simone D’Arcangelo, que compõe quadros vivos colocando os personagens contra o pano de fundo iluminado natural ou artificialmente – pela fogueira. Com a câmera posicionada alguns centímetros acima da vegetação rasteira, ele dimensiona a vastidão do mundo ao redor e o absurdo de Menéndez em acreditar que esta terra pode ser inteiramente sua, ao mesmo tempo que aproxima os personagens do destino mais óbvio de sua jornada: a morte, simbolizada na terra. O trabalho de Simone é de cair o queixo, não somente pela beleza das imagens criadas, mas especialmente pela adequação destas a esse mundo cão.
Um mundo de homens que disputam jogos de tiro e força, a queda de braço ou o boxe, com o contato físico e um homoerotismo latente, aperfeiçoado na cena envolvendo MacLennan e o Coronel Martin (Sam Spruell). Ou um em que o ataque covarde a indígenas indefesos tem como espólio a jovem indígena, estuprada por Bill e MacLennan antes de ser estrangulada por Segundo. É um ato de dignidade, ao menos em sua cabeça, pois deve crer ser mais desejável a morte do que a memória do estupro.
A direção enfatiza a discussão da masculinidade na forma animalesca com que MacLennan e Bill banham no mar – a sensação é de serem gorilas, em como movimentam os braços e contraem os músculos diante do olhar de Segundo – em comparação com a participação de Josefina Menéndez (Adriana Stuven), que pauta o desenrolar da discussão do terceiro ato.
Se há algo de que não gostei, apesar de compreender de uma perspectiva intelectual, é a estrutura elíptica de The Settlers. A estrutura permite a compreensão da dimensão épica do empreendimento narrativo, de forma que os encontros no caminho estabelecem os tipos de ocupação do território originalmente nativo e encerra na legalização do mal que aconteceu e testemunhamos por 90 minutos. Um testemunho à distância, tal como o olhar de Segundo, que não cumpre a promessa de herdar a postura heróica relutante do eterno Harmônica, de Era Uma Vez no Oeste.
Pode ser uma projeção construída em direção à narrativa e, portanto, injusta com o trabalho admirável de Felipe Gálvez Haberle, pois pareço estabelecer um querer além do que a obra é. Contudo, foi o que senti logo quando bati o olhar em Segundo, só que, talvez, na história chilena, não havia espaço para o heroísmo hollywoodiano.
Crítica publicada originalmente na cobertura do Festival de Cannes 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “The Settlers”
É bem pertinente sua análise. Acho que há um retrato talvez menos cruel do que foi a realidade de ocupação das Américas. A eliminação dis povos originários em áreas longínquoas nunca foi diferente disso. Seus corpos eram estorvos a ser retirados para deixar a área “limpa” e livre a ser ocupada.