The Pot-au-Feu, que tem este nome a partir do prato típico da culinária francesa, é um dos mais apaixonantes e melhor dirigidos romances que tive a chance de assistir recentemente. Deu ao francês de ascendência vietmanita Trần Anh Hùng (de O Cheiro da Papaia Verde e o recente Amor Eterno) o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, e narra o amor entre Dodin Bouffant, apelidado de o Napoleão da Gastronomia, e Eugenie, a cozinheira com que trabalhou por duas décadas. Ela não repele os avanços dele, apenas rejeita a ideia de compromisso pelo casamento. “O casamento é uma refeição que começa pela sobremesa”, ela explica.
Esse romance é retratado de três modos particulares e que, interconectados, oferecem um ponto de vista do amor raramente explorado no cinema: o amor pela arte. Desde a cena inicial, Trần Anh Hùng fascina o olhar e atiça o apetite em como retrata o processo paciente de preparo de uma refeição, a dinâmica dentro da cozinha de Dodin e Eugenie – organizada de modo horizontal, não vertical, com tarefas bem determinadas – e a gênese do cardápio que havia sido pensado, planejado e sonhado antes de ser servido. A decupagem do diretor é precisa: troca os cortes óbvios que poderiam interromper o ritmo culinário, em prol da câmera que passeia enquanto saboreia, com o olhar, o processo a que se dedicam os personagens. É um período demorado de tempo, em que as relações humanas ainda não estão às claras, mas que me abraçou com carinho, sem afoiteza nem força. Eu queria somente permanecer na cozinha, e apreciar esta forma da gastronomia cinematográfica.
Junto à forma como a direção encena os atos preparatórios, o ato de cozinhar uma refeição como um ato de entrega ao outro e o ato de comer retratado de forma cerimonial e religiosa. Em certo momento, Dodin explica a ciência por trás de um bolo cuja clara em neves ajuda a conservar a consistência do sorvete em seu recheio. A razão auxilia a sensação, e traduz o personagem como um sujeito lógico, embora não o bastante para dispensar o prazer que há em devorar a sobremesa. Em outro instante, os personagens se reúnem para comer uma iguaria que lhes exige “esconder-se” debaixo de guardanapos: o disfarce mascara a falta de educação (em comer com as mãos) e serve de ritualística para apreciar aquela refeição em particular. É que a gastronomia, para a narrativa, equivale a um amor sacro e mesmo a preparação de uma canja com legumes é exige delicadeza porque é feito à mulher que ama.
Desse modo, The Pot-au-Feu expressa o amor não através de declarações, mas de ações culinárias. A medida do amor de Dodin e Eugenie está no preparo gastronômico e no prazer em assistir ao outro alimentar-se. Eis o motivo por que o jejum é a materialização ideal da dor provocada pelo amor e por que, apesar de o jantar do príncipe da Eurásia impressionar, também é sufocante: a abundância, ou melhor, o excesso de amor é equivalente à ausência dele. Há, até mesmo, o prazer erótico em como os personagens manipulam os alimentos, e o cuidado com que Dodin escolhe uma pera e a repousa no prato é justificada no corte que sucede a ação: o corpo de Eugenie nu, em um raccord (uma associação de imagens) com a pera descascada.
A terceira forma como o roteiro retrata o amor é nos momentos em que Dodin e Eugenie estão juntos: a forma como conversam é carregada de uma solenidade, uma evidência que o amor que nutrem um pelo outro parte do estímulo intelectual e sensorial da visão, olfato e paladar antes de se consumar na cama. Personagens complementares, cujas atuações de Benoît Magimel e Juliette Binoche conferem dignidade e maturidade, Dodin e Eugenie são o equivalente à luz artificial de lanternas e velas (a teoria e técnica artística) e a luz artificial do sol e da natureza (a prática e espontaneidade artística). Se ele é enxergado em contraluz e em função da iluminação justificada, ela é foco da claridade da natureza a narrativa inteira, em um jogo visual apaixonante. Aliás, assim como Trần Anh Hùng dedica-se ao processo gastronômico, também o faz quanto ao relacionamento, em sequências longas inclinadas a acompanhar o percurso, pelos corredores da mansão onde mora, de Dodin ao encontro de Eugenie.
Fascinante do início ao fim, ou quase, The Pot-au-Feu perde o sabor no terceiro ato. Ainda que o processo pelo qual passa um certo personagem seja inevitável, a forma como a direção o expõe vai de encontro à naturalidade com que havia ilustrado o paralelismo entre cozinhar e amar. Além disso, a reintrodução de uma personagem que havíamos conhecido no primeiro ato leva-nos a questionar a razão por ter sido relegada por tanto tempo, até em função da importância que terá.
O menu degustação de The Pot-au-Feu não é de todo irrepreensível, mas é um lembrete, aos amantes de histórias de amor, de que estas não são construídas com juras românticas. É o processo que torna o amor o que é, e disto a direção não se esquiva.
Crítica publicada para a cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.