Eu estava na faculdade quando a pergunta que ecoava pelos noticiários era “Cadê o Amarildo?”. Na época, o desenrolar da investigação já embrulhava o estômago de quem assistia às reportagens. Ainda assim, conseguíamos viver nossas vidas e seguir nossas rotinas porque, infelizmente, já aprendemos a nos habituar com absurdos sendo noticiado na televisão. A verdade é que recebemos a notícia de barbáries sendo cometidas – algumas vezes bem próximo de nós – e continuamos nossa refeição. Quando não nos acostumamos a o absurdo, trocamos de canal para não termos que lidar com ele. Perdemos as contas de quantos “Amarildos” protagonizaram manchetes. Mas quantas vezes eles sequer foram noticiados? Hoje completam dez anos que não sabemos do paradeiro de Amarildo ou de seus restos mortais. Para muitos como eu, o documentário reacende a essa dúvida enquanto desafia nossa memória. Já para a família, ele evoca uma década em presença da ausência de um pai, de um marido, de um irmão. Dez anos de uma pergunta sem resposta.
O documentário Cadê o Amarildo? Faz uma reconstrução cronológica do ocorrido, com relatos dos familiares de Amarildo, do delegado responsável pelas investigações, dos promotores que cuidaram do caso, do ex-secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame, da deputada estadual e ex-chefe de polícia Martha Rocha, além do depoimento inédito de duas testemunha-chave que nunca haviam sido ouvidas pela justiça por serem dadas como desaparecidas. Desapegado do formato talking head, o documentário traz imagens do julgamento dos policiais militares envolvidos e a reconstituição passo a passo das últimas horas de vida de Amarildo sob a narração de testemunhas. Reaproveitar o ambiente jurídico para exibir as gravações só não foi um recurso mais criativo do que o utilizar do microfone para proteger a identidade daqueles que se arriscaram em prol da justiça.
O filme já começa nos ambientando na favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro, com a dúvida sobre o paradeiro do ajudante de pedreiro sendo entoada ao som do funk. Conhecemos um pouco da geografia da área do crime, enquanto remontam os fatos que deflagraram a Operação Paz Armada – Como se fosse possível paz e armas coexistirem. O início do documentário traz muito da versão do Estado e do bando de policiais liderados pelo Major Edson. Conforme a obra avança, somos colocados de frente com a família da vítima e podemos sentir de perto a dor de revisitar mais uma vez aquele dia divisivo em suas vidas.
O trabalho jornalístico do documentário revira o baú dessa história e escancara a podridão dos envolvidos em ocultar seus crimes. Apesar de, na época, a imprensa fazer a cobertura desse caso que gerou comoção internacional, ela não conseguia filmar o que acontecia nos becos. Enquanto isso, os algozes avançavam numa narrativa que associava ao tráfico tanto Amarildo quanto sua viúva, Elizabeth. Afinal, não há responsabilidade sobre execução de criminoso em operação. E para a população do asfalto, quem dá “bom dia” ao bandido, é bandido também. Ainda que acompanhemos a verdade sobre o assassinato de Amarildo vir à luz, é doloroso assistir às cenas de reconstituição do evento feito em cima dos depoimentos. As escolhas dos diretores revelam um respeito com a dor dos familiares. Mas a não artificialidade da reconstituição dessa não-ficção nos dilacera ao nos inserir naquele ambiente como se estivéssemos presentes durante os piores momentos da vítima.
Apesar disso, Cadê o Amarildo? resgata o humanismo ao ir muito além do personagem da notícia e nos apresentar o Amarildo de Souza sob o olhar daqueles que o amam. Pudemos conhecer suas paixões, seu amor por sua família e a origem de seu apelido, boi. Sua vida não pode ser resumida à sua morte. E, mesmo com sua família ainda lutando para contar a sua história e lutar por justiça, é tocante presenciar a força que Elizabeth e seus filhos encontram uns nos outros. Por mais emocionante que tenha sido observar o desenrolar desse caso ao longo de quase duas horas, somos presenteados com um belíssimo quadro para finalizar essa obra cinematográfica: um sorriso. Os realizadores não poderiam ter feito uma escolha mais feliz.
Cadê o Amarildo? estreou dia 14 de julho de 2023, na Globoplay. 10 anos após o desaparecimento de Amarildo de Souza.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.