A banda favorita do meu pai era o KISS, e o legado kisseiro se perpetuou, sendo a minha banda favorita também. Eu cresci ouvindo aqueles caras pintados. Quando criança, eu fingia tocar a bateria enquanto ouvia as músicas, agitando as baquetas do meu pai no ar. Ou imitava o Gene Simmons cuspindo sangue usando a groselha que tinha na geladeira. Fazíamos parte do Kiss Army Brasil, e íamos sempre nas reuniões onde eu me maquiava de Eric Carr. Minha adolescência era uma sequência de várias camisas do KISS por de baixo do uniforme. Ainda temos todos os vinis, os cd’s, os quadrinhos do Psycho Circus e, inclusive, o jogo de computador que jogávamos juntos. A capa do Destroyer ficou pintada por anos no meu quarto. Lembro de quando tinha 10 anos e meu pai queria me levar a São Paulo para assistirmos o show da turnê Psycho Circus – Minha mãe não deixou (risos). Quase uma década depois, a banda voltava ao Rio e fomos assistir na Apoteose. Eu fiquei pertinho do palco. Experiência única e nossa! O KISS é um enorme e indestrutível elo entre meu velho e eu.
A Era de Ouro não é uma cinebiografia do KISS. Tão pouco da Donna Summer e dos outros artistas que são apresentados no filme. A narrativa poderia ser sobre a Casablanca Records, a gravadora independente que lançou tantos artistas de sucesso, entre eles o KISS. Apesar disso, o longa se concentra na história de Neil Bogart (Jeremy Jordan), o dono da gravadora. Sempre destacando sua ambição e a maneira audaz como se jogava nos negócios e na vida. Neil é um jogador que aposta na adversidade e o filme deixa isso bem claro. Suas empreitadas não eram sobre tudo ou nada, mas sobre tudo e mais um pouco. É, de certa forma, estimulante acompanhar a história de alguém que possui uma visão e acredita com tanta força nela que não se abala diante dos fracassos e segue na jornada para materializar seus sonhos.
A estrutura de A Era de Ouro é construída para que não apenas nos identifiquemos com a figura de Bogart, mas nos sentíssemos inspirados a ponto de idolatrá-lo. Toda a narrativa é contado sob sua perspectiva – Ainda que o verdadeiro tenha falecido há 40 anos. A quebra da quarta parede é um recurso muito explorado dentro do filme, e serve como um reforço para a construção dessa ponte invisível entre expectador e protagonista. Mas o uso desregrado desse discurso direcionado à câmera perde sua força e passa a ser demasiado expositivo. A cada situação que ocorre ao longo do filme é imediatamente seguida de uma explicação, como em um discurso de réplica onde o personagem se justifica e aos seus atos, ou simplesmente descreve aquilo que já foi assistido. Ao longo do segundo ato, essa repetição de fórmula provoca uma sensação de “preguiça”. Essa montagem repetitiva e previsível quebra o ritmo da narrativa, além de soar um tanto coercitiva e leniente.
A necessidade de justificar o protagonista e suas ações plastifica a trama de forma unidimensional. Se o homem Neil Bogart é falho, o ídolo construído na obra é alguém cujas decisões – narcisistas – foram tomadas com o melhor dos propósitos ou cujas consequências são demasiado apressadas para que o mesmo consiga sentir a aspereza do fundo do poço. Seu sofrimento é nada explorado, apenas quando é conveniente vitimá-lo, ou mostrar outro lado da moeda que exige disposição por parte do expectador para crer que exista. Outras cinebiografias do universo da música deram a oportunidade a quem está do outro lado da tela de fazer o seu juízo de valor sobre o personagem, fugindo desse maniqueísmo embebido da propaganda do sonho americano, como Ray e Rocketman. Ambas não tiveram medo de mostrar o pior momento de seus protagonistas, assim como também não se intimidaram em mostrar suas piores faces.
Ainda no meio musical, A Era de Ouro peca por dar quase nenhum destaque aos artistas lançados pela gravadora. Suas participações são episódicas, dando pouca ou nenhuma oportunidade de explorar com mais profundidade aqueles que são ícones para muitos. É sobre permitir com que eles contem suas perspectivas e acréscimos para a história de sucesso, ao invés de tratá-los de forma instrumentalizada apenas para bajular a figura de Neil Bogart como o grande descobridor de talentos e salvador daqueles pequenos sonhadores. Como fã do KISS, confesso que me senti incomodado com a escolha de seus intérpretes e pela forma infantilizada com que foram retratados – Não que eu ache que Paul e Gene sejam as pessoas mais fáceis de lidar, mas é um tanto conveniente retratá-los como adolescentes mimados e mal-agradecidos. Algumas participações são interessantes, a exemplo da de Jason Derulo como Ron Isley e Wiz Khalifa como George Clinton, mas são muito breves.
Talvez a artista que possui maior destaque na narrativa seja a Donna Summer (Tayla Parx). Conhecemos algo de sua origem, além de aspectos pessoais que são mais explorados. A personagem de Parx, entre as estrelas da Casablanca, é a que mais tempo fica sob o holofote. Também é com ela que o filme desenvolve melhor a linguagem de musical. Mas é em uma das cenas com ela que a direção do filme fez suas escolhas mais desafinadas: A gravação de “Love to Love You Baby” implica em um orgasmo, impulsionado por Bogart – por que ele, né? – numa construção que mirou o sexy e acertou o kitsch. Em muitas sequências, o longa adota a linguagem do musical para trazer mais dinâmica e também um quê de surrealidade e fantasia para essa biografia que a todo custo tenta tornar seu protagonista um sol em meio as demais estrelas. O título original do longa é muito mais honesto ao se referir à Bogart ao invés de um coletivo, como o pôster e o título no Brasil sugerem.
A trilha musical é um dos pontos altos do filme. A escolha das músicas que surgem ao longo da narrativa, e de forma diegética, dão energia a um filme cuja estruturação é maçante. Claro que fiquei arrepiado com as versões das músicas do Kiss tocadas. “Rock n’ Roll All Night” é um hino! E “Should It Out Loud”, mesmo tendo sido lançada posteriormente à época do filme, foi uma escolha positiva. O ponto alto da participação do KISS no longa foi durante a apresentação de “Beth”, uma das minhas baladas favoritas da banda e que rendeu um momento de acalento a esse fã emocionado. O figurino também merece destaque. São deslumbrantes e refletem os usados pelos artistas retratados, assim como remetem aquela Era de Ouro da música. Acredito que a fidelidade dos figurinos e maquiagem do KISS não tenha sido possível por questões de direito autoral. Ainda assim, conseguem refletir aquelas utilizadas pelos integrantes no apogeu de suas carreiras.
Enquanto reconstrução de uma época e revelação dos bastidores do mundo da música, o filme garante a sua relevância. Sua maior fraqueza vem da liderança sobre o projeto. Tanto o roteiro quanto a direção são assinados por Timothy Scott Bogart, filho de Neil Bogart. Sua falta de experiência em ambas as funções é notória. E se torna ainda mais problemática por não conseguir um afastamento da figura de seu pai. É louvável que queira homenageá-lo. Eu fiz questão de citar o meu no início do texto. Mas sua determinação em podar possíveis juízos de valor sobre sua figura paterna acabaram devastando o arco dramático de seu protagonista. Sua obsessão com justificativas – expositivas ou não – gera uma antipatia pelo seu “herói”. Até mesmo a personagem de sua mãe, Beth Bogart (Michelle Monaghan), soa como mais uma marionete. Outros personagens que orbitam a Casablanca tinham grande potencial, mas acabaram sendo desperdiçados, como é o caso daqueles interpretados por Dan Fogler, Jay Pharoah e Jason Isaacs – reduzidos a estereótipos da época. Talvez outras pessoas mais gabaritadas e distantes da história conseguisse trazer mais equilíbrio à obra. Infelizmente A Era de Ouro tinha tudo para ser um magnífico concerto, mas acaba se mostrando um disco que arranhou no solo de seu maior hit.
A Era de Ouro chega aos cinemas no dia 10 de agosto de 2023.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.