Após a sessão de Propriedade , no Minas Tênis Clube, as atrizes Malu Galli e Zuleika Ferreira participaram de um bate papo com o público mediado pelo crítico e um dos curadores do festival, Marcelo Miranda. As atrizes comentaram dos bastidores, dos laços de amizade que se firmaram entre elenco e equipe, sobre a preparação, sobre a eleição de 2018 que acontecia nesse período, os quatro anos de obscurantismo que sucederam e sobre o lançamento do filme no Festival do Rio de 2022, novamente no período eleitoral. Também falaram sobre a atuação mais física, onde o texto não era o foco da cena, mas era o que o filme exigia.
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O Cinema com Crítica esteve presente e pode fazer algumas perguntas para as duas atrizes:
A.G.: “Vocês colocaram que as duas personagens estão em lados opostos, no caso, uma (personagem) pertence ao coletivo enquanto a outra lida com a situação individualmente. Também tem a questão da divisão entra as classes: uma é a patroa e a outra é a funcionária. Mas vocês acreditam que as suas personagens são duas faces da mesma moeda? São proporcionalmente opostas, ou diametralmente opostas? Já que ambas são mulheres que, de certa forma, viveram às sombras de seus maridos a respeito, de decisões e, nesse momento de ápice de estresse, de uma situação absurda, elas retomaram a força para sí e mostraram suas verdadeiras forças em tomar o controle da situação cada uma à sua maneira.”
M.G.: “Acho que sim. Eu nunca tinha pensado por esse viés de gênero, mas eu acho que sim. A coisa da omissão da Tereza e, de alguma forma, da omissão da Antônia também, né. Ela teve uma vida ao lado do marido e o marido era violento com ela. “
Z.F.: “E ela não admite nem conversar sobre.”
M.G.: “É! Acho que o filme, ele (mostra) mais do que dois lados…e isso é uma discussão que a gente tem tido muito. E o filme já rodou muitos festivais. Já recebeu muitas críticas, né… lá fora, aqui… enfim, já teve muito debate. Tem uma tendência a esse maniqueísmo de achar que são os trabalhadores e os opressores; a branquitude e os escravizados. Mas eu acho que, o Daniel, ele…quando a gente falava ‘como é que se sente pena da Tereza. Não é pra sentir pena da Tereza. A Tereza é a vilã. Quem é o vilão?’ Na verdade, o filme promove exatamente essa reflexão. E aí, teve uma crítica americana… O filme ganhou recentemente o Melhor Filme no Fantastic Film (Fantastic Fest) lá no Texas… E teve uma crítica americana que escreveu uma coisa que eu achei muito interessante. Que ela fala que, na verdade, o filme…começa o filme… ela usa um termo… parece um filme de ‘pobre comendo rico’. Que acha que o filme…é de um tema recorrente, né… levantes populares, mas o filme vai além disso. O filme relativiza tudo pra falar, na verdade, de indivíduos solitários lutando pela sobrevivência numa sociedade extremamente capitalista. Na verdade, é uma grande guerra pela… ninguém tá junto. A dona Antônia não tá junto do Dimas, que também não está junto daquela menina que se vende lá por um vestido e vai embora. Que também não tá junto… ninguém tá junto. Tá todo mundo tentando sobreviver. Inclusive a Tereza. Todo mundo é vítima dessa barbárie que virou a nossa sociedade. Inclusive, isso é um pensamento mais interessante do que a gente pensar quem é a vilã, do que ‘ah, não pode torcer pela Tereza. Tem que torcer pela Antônia’. A Antônia é uma filha da puta também né… “
Z.F.: “Mais ou menos…”
(Risos)
M.G.: “Ela vai matar…vai degolar a mulher, né. Então assim… o filme vai além dessa questão dos dois lados. A gente tem uma tendência, ainda mais aqui no Brasil… A gente tem uma tendência de ver tudo dividido em dois, né…”
Z.F.: “Eu… Eu ainda fico um pouco vendo essa… eu ainda não consigo deixar de ver um pouco essa qualidade desse povo que é oprimido mesmo, né. E ali é uma loucura no auge de uma vida toda escravizada. Uma mulher que tá com o filho prestes a morrer e diz que não tem um carro. E o carro tem…o carro chega…. eu não consigo deixar de ver essa…”
M.G.: “Os reais motivos pra chegar naquele ponto.”
Z.F.: “É. É uma questão social. E eu não consigo deixar de ver. Não deixo… e eu não acho que a Tereza seja uma filha da puta…”
M.G.: “Eu acho que ela é. Ela é também! Na medida que ela é omissa. Que ela é alienada. Que ela corrobora pra perpetuação desse estado das coisas, né. Assim como a gente. Mas eu acho que, independe. Independe da história particular dela. Pensando ela como figura social, ela é. Ela corrobora, assim como todos nós, de alguma forma. Não todos, mas, enfim… Os privilegiados corroboram para que isso se perpetue, né. Então tem isso. Isso é inegável. Isso tá no filme também.”
Z.F.: “Eu vejo muito assim…. eu vejo essas duas…com um pouco esse (afastamento) – gesticula afastando as mãos em paralelo.”
A.G.: “Eu gostaria de saber de vocês a respeito da preparação. E se vocês se espelharam em alguma história, algum personagem e até em algum filme específico. Tem alguns, inclusive, na minha cabeça de similaridade temática.”
M.G.: “O Daniel falou pra mim de um filme. Eu assisti. O nome é… é de um cachorro São Bernardo vira uma fera…”
M.M.: “Cujo”
M.G.: Cujo! Exatamente! A mulher presa no carro com o filho, uma criança. E o São Bernardo…aquela coisa…um monstro do lado de fora. E o filme inteiro é isso. A mulher tentando sair do carro. É do Stephen…”
M.M.: “Stephen King! E é um filme famoso de mulheres presas em carros…”
M.G.: “Foi o filme que eu vi. Que foi a referência que ele me deu.”
Z.F.: “Não… é… eu conversei muito com o Daniel sobre esse grupo, sobre Tonha. E eu fui buscando na minha memória esse coletivo, essa mulher da terra que é oprimida. E não preciso ir muito longe porque na outra geração ela tá lá.”
A.G.: “Por que enquanto eu assistia o filme… na minha cabeça já veio Quarto do Pânico, do David Fincher, que tem uma situação próxima. A Jaula, do Chay Suede. E também acabou reverberando Cabra Marcado para Morrer, pelo contexto.”
M.G.: “Esse do Chay acabou sendo contemporâneo ao nosso. Da mesma época.”
Z.F.: “Eu acho que Daniel, aqui agora, poderia falar das referências dele.”
M.G.: “E ele deve ter várias porque ele é um nerd de cinema de gênero.”
M.M.: “John Carpenter, certamente!”
Z.F.: “Pra mim, a construção da Tonha é de uma mulher da terra. Olha meu filho, eu só faço praticamente isso (risos). É nordestina. É mulher da terra. Já é meio caminho andado.”
A.G.: “E a respeito do trauma, Malu. Tem alguma experiência? Tem algum filme específico, algum personagem?”
M.G.: “Não. Eu procurei me colocar no lugar de alguém que tivesse passado por isso assim. Imaginar como que essa pessoa reage, como essa pessoa se sente. Que tipo de paralisia, né. Que tipo de dificuldade de comunicação, dificuldade de falar sobre o que está sentindo, né. O que acontece com ela no início do filme. Acho que é uma coisa que tá tão perto da gente. As pessoas estão sofrendo tanto de pânico, de ansiedade, de estresse pós-traumático. Infelizmente, isso é uma coisa que tá comum na nossa sociedade. Isso tá perto da gente de alguma forma. Então, assim, não é uma coisa tão… que, ainda bem, não vivi nada parecido nem tive algum tipo de experiência assim. Mas, enfim, era um exercício de imaginação mesmo, de me colocar nesse lugar.”
Uma espectadora do público elogia a respeito do protagonismo feminino, de serem ambas mulheres de idade mais avançada.
M.G.: “Engraçado. Eu não tinha imaginado… quando ele (Alvaro) fez a pergunta, eu não tinha me tocado que eram duas mulheres… eu via assim… eram duas mulheres que viviam em duas pontas do filme. Mas eu não tinha pensado nelas como duas mulheres que viveram a sombra dos maridos e que, realmente, sofreram algum tipo de apagamento, alguma invisibilização. Porque a Tereza era estilista. Ela não tinha exatamente essa relação de mulher invisibilizada. Mas apesar de ser absolutamente alienada sobre essa situação da fazenda. É aquele negócio de ‘as finanças não são comigo. Não quero saber de onde vem esse dinheiro, nem como ele se produz’. A Antônia já era uma mulher vítima do marido, né. Eu acho que cada vez mais a gente vai ter filmes com protagonismo feminino. Que cada vez mais a gente vai ter filmes com protagonistas LGBTQIA+, e não só as mulheres, mas as outras figuras que precisam de representatividade. É um trem que simplesmente não se pode mais parar. Até porque são personagens extremamente ricos, que vão falar de outros universos. E que não são necessariamente representados no cinema, né. De universos subjetivos, emocionais.”
Z.F.: “Tem uma frase de Tonha…que dizem pra Tonha que é ‘e seu marido? cadê seu marido?’. E ela responde: ‘Não sei. Você não sabe que foi sempre assim?’. Então isso, pra mim, remete muito à essa submissão. (Remete) à essa condição dela enquanto mulher. Foi muito e é muito forte quando eu vejo ela completamente adaptada aquele papel. Dela ali naquela situação, naquele grupo social, pela vida. Mas eu acho que, diferente dela (Tereza), ela é vista como líder. Depois do marido, ela tem respeito. Tá ali. Enquanto ela (Tereza) tá alienada nesse sentido de mulher que não sabe o que acontece ali na fazenda, Tonha já sabe de tudo e sabe da vida de todos. A mulher que trabalha ali, que perdeu um filho, que foi embora… ultimamente, ela tem uma certa revolta, né.”
M.M.: “Para acabar, uma última pergunta.”
A.G.: “A minha pergunta vai ser incômoda, então eu peço desculpas desde já (risos). Maniqueísmo a parte. Mas se vocês tivessem que escolher um lado dentro dessa narrativa, vocês iriam escolher qual? Vocês iriam manter o das personagens de vocês?”
M.G.: “Ah! (risos) Não. Eu seria a Dona Antônia má pra caralho! (risos). Sai desse carro, Dona Tereza! (Risos).”
Z.F.: “Eu, nem precisa perguntar! (risos).”
M.G.: “É que eu nunca sou escalada pra Dona Antônia, entendeu. Eu adoraria ser… mas eu tenho essa cara de Tereza (risos). Mas aí, é isso… (risos).”
A.G.: “Perfeito, gente. Muito obrigado!”
O bate papo foi realizado após a exibição de Propriedade para o 17 Festival de Internacional de Cinema Cine BH, no dia 29 de setembro de 2023.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.