Ter a sua existência reconhecida. Ter sua existência respeitada. Essas são as bases das reivindicações de Mel Rosário, uma mulher trans que inicia uma batalha judicial contra uma igreja para ter seus direitos fundamentais garantidos. Seu desejo inicial era muito simples: frequentar o culto da igreja da sua vizinhança. Toda Noite Estarei Lá escancara a transfobia que transformou os pastores da igreja em lobos violentando a carne de seu rebanho. Mas a fé de Mel não é pouca. E na mesma medida é sua determinação.
Por ser uma mulher transexual, Mel é apontada em sua igreja como “alguém possuído por demônios”. Seguranças na porta da igreja são incumbidos pelo pastor que lidera a congregação para não permitirem a entrada de Mel ao culto. Houve um culto em questão onde foi agredida com palavras e fisicamente. Neste, quando foi retirada do local, chegou a lesionar seu joelho e sofrer escoriações. O ocorrido fez com que Mel buscasse a justiça para garantir o seu direito de ir e vir. No caso, chegou a renunciar a indenização, pois buscava apenas o tratamento com o respeito e dignidade.
O documentário avança, e com ele vamos conhecendo mais a fundo sobre sua religiosidade, que pode ser vista, inclusive, em forma de versículos pintados na parede de seu lar e em seu salão. Mel confia plenamente seu destino à justiça divina. Ela compartilha seus sonhos e medos com a câmera, mas sempre referenciando a Deus e exaltando seu poder. Sobre a igreja, entende que é a casa de Deus, portanto qualquer um deve ser acolhido. Diz também que é um lugar onde consegue se conectar com seu criador. Quando questionada sobre o porquê de não buscar outra congregação, responde que é seu direito estar lá e que não podem impedi-la. Essa resposta é, inclusive, incentivada por seu advogado.
Outras facetas da protagonista são exploradas. Vemos o carinho e cuidado que ela possui com sua mãe. Enquanto cabeleireira, também faz o cuidado com a aparência de sua idosa genitora. É durante esse ato de afeto que ela compartilha conosco um pouco de sua história, sobre os valores passados por sua mãe. Ela também compartilha seu sonho de comprar um carro para expandir seus negócios. A cada conversa, ficamos mais íntimos dessa personagem. A câmera a devolve ela a dignidade e a humanidade que lhe foi negada por seus irmãos de fé. É positivo vermos como ela é bem relacionada com as pessoas da sua vizinhança, que inclusive apoiam sua luta. De maneira pacífica e assertiva, Mel se posiciona diariamente à frente da igreja com dizeres de protesto. Afirmando sua existência e seus direitos. Ainda assim, vemos a recusa dos pastores em cumprir decisão da justiça favorável à Mel.
O documentário se desenvolve na época em que o Brasil está mergulhado em um poço de conservadorismo, alimentado por líderes políticos que colocam um alvo nas costas das minorias. Além disso, faz o registro de sobrevivência de Mel durante o governo Bolsonaro e a pandemia. Vale lembrar a maneira criativa com que os realizadores contornam a recusa da outra parte em aparecer. Em alguns momentos, temos apenas o registro da porta fechada onde acontece a audiência. Constantemente questionados, eles aproveitam para capturar os deslizes preconceituosos e as micro agressões daqueles que insistem em não respeitar nossa protagonista. Quando não são vistos fazendo xingamentos e comentários jocosos, insistem em chama-la por seu nome de batismo e não seu nome social.
Toda Noite Estarei Lá dá voz a uma luta ainda muito invisibilizada. O Brasil segue sendo um dos países que mais mata travestis e transexuais. Aqui, vemos uma pessoa lutar por seu direito básico, e de forma resiliente e não violenta. É interessante ver como ela carrega consigo ensinamentos como respeito e perdão, mais próxima da mensagem de amor do cristianismo do que a pregada pelos líderes de sua igreja. Ainda assim, Toda Noite Estarei Lá não é um filme que discute fé ou religiosidade. É um documentário a respeito da garantia de direitos. Não à toa, ele se inicia listando os Direitos Fundamentais garantidos pela Constituição Federal. Mel Rosário é uma ativista de força inesgotável e uma pessoa agradabilíssima que tive a oportunidade de conhecer. A igreja deveria reconhecer o privilégio que possui ao tê-la entre os seus.
Toda Noite Estarei Lá foi exibido no 17 Festival Internacional de Cinema Cine BH e no 25 Festival do Rio
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.