Justine Triet reflete sobre cinema e sociedade no instigante filme que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes.
Há uma cena específica que para mim serviu como uma chave para pensar todo o filme. O momento mais climático de “Anatomia de Uma Queda” se dá quando, no julgamento da protagonista Sandra (Sandra Hüller), temos acesso ao áudio da briga entre o casal no dia anterior ao incidente. Diegeticamente, o arquivo é apenas um áudio, porém, Triet escolhe nos ilustrar o que se ouve através de um flashback, enquanto o material é escutado no tribunal. Em determinado momento, a discussão se acalora, as vozes param, e há sons que remetem a um embate físico. Triet, nesse momento, corta o flashback e nos nega a imagem dos acontecimentos, retornando sua câmera para as reações no tribunal. Ficamos então entre duas versões: uma contada pelo investigador da polícia que conjectura com base no áudio uma agressão da esposa contra o marido, outra contada pela própria esposa que relata um marido reagindo agressivamente contra si mesmo, as paredes e móveis da casa.
Entre as propriedades mais essenciais do cinema, encontra-se a capacidade de registro da realidade. A câmera proporciona um registro perfeito, pois, a princípio, dispensa a mediação da criatividade humana – basta apertar um botão, direcionar a câmera e começar a filmar o que está na frente – e é capaz de capturar o tempo e o movimento. A câmera em si não possui viés ideológico ou faz juízo de valor, ela é apenas um aparato que, se ligado, eterniza em filme aquele momento que se passa diante de suas lentes. Essa propriedade ontológica da imagem do cinema resulta em um efeito psicológico em quem a assiste: se há um registro audiovisual de um acontecimento, este acontecimento é lido como objetivamente verdadeiro.
Contudo, este é um filme sobre o que acontece no extra-campo, aquilo que a câmera não mostra, mas que existe naquele universo fílmico. Quando se liga uma câmera, o operador automaticamente realiza uma escolha: o que será enquadrado. O cinema nos oferece vislumbres de mundos diferentes do nosso através de uma janela limitada. Temos acesso a um recorte específico de tempo e espaço, mas através desse recorte especulamos tudo mais que possa existir naquele universo. A mente humana não lida bem com a incompletude. Justine Triet em “Anatomia de Uma Queda” nos convida a preencher as lacunas que existem no que vemos em tela e brinca com as possibilidades de percepção que sua complexa narrativa pode nos oferecer.
Um dos nossos aliados no desafio de montar este quebra-cabeças é o menino Daniel (Milo Machado Graner), filho da protagonista e de seu marido morto, que por um acidente sofrido perdeu boa parte da sua visão. Assim como nós, Daniel também possui uma perspectiva limitada acerca dos reais acontecimentos. A condição física do menino o coloca em pé de igualdade com o espectador.
Comecei o texto falando sobre uma cena específica que oferece uma perspectiva sobre a ideia geral do filme. O momento da briga entre o casal apenas reproduz uma dinâmica que já se estabelece desde a sequência inicial, em que ocorre o incidente que dá razão ao enredo. Vemos recortes de momentos que não são definitivos para responder à grande questão que se coloca. O verdadeiro filme se desenrola quando não estamos lá pra olhar, nem nós, nem Daniel. No extra-campo. Dessa forma, qual é o papel que nos cabe?
Triet se utiliza dessa necessidade humana de preencher as lacunas para nos colocar em um dilema. Essas lacunas são preenchidas por cada personagem que se propõe a explicar o acontecido de acordo com seus próprios valores e percepções. Nenhuma das questões que se colocam são simples de serem respondidas. Nenhuma das respostas são definitivas. Mas a autora muito sutilmente nos expõe um padrão: todos os homens que servem como testemunhas durante o processo de julgamento da protagonista se colocam a seu desfavor, formulando explicações que condenem a mulher pelo assassinato de seu marido ou que a deleguem a culpa pela derrocada psicológica dele. O hematologista forense, o promotor, o investigador da polícia, o psiquiatra, todos buscam descredibilizar as versões oferecidas por Sandra sobre o ocorrido. Quando a imagem-prova não existe, as estruturas de poder ocupam as lacunas.
Não é que dê pra se afirmar com convicção que Sandra seja inocente. Nesse embate de narrativas entre defesa e acusação, Triet faz questão de não oferecer respostas. Fatos como o envolvimento romântico entre a protagonista e seu advogado, ou um certo diálogo que ela tem com seu filho no momento mais crítico do julgamento podem ser interpretados de maneira ambígua. As elipses temporais também são lacunas que impossibilitam qualquer conclusão por parte do espectador. Justine, porém, nos oferece uma solução. A nós e a Daniel ao mesmo tempo.
A visão limitada literal e metafórica do menino faz com que ele enfrente um dilema parecido com o vivenciado pelo espectador, guardadas as devidas proporções. Marge (Jehnny Beth), uma espécie de assistente social designada para acompanhar Daniel durante o período em que o processo se desenrolava com o intuito de prevenir qualquer interferência da mãe em seu depoimento, é que aconselha o garoto da seguinte forma. Na ausência de elementos materiais que possibilitem uma conclusão definitiva sobre os fatos, ele deveria tomar uma decisão. Escolher no que acreditar ao invés de ser assombrado pela dúvida para o resto da vida. Dessa forma o filho se converte em juiz e seu depoimento final dá fim ao caso.
Triet toma uma decisão curiosa nesse momento. Em mais um flashback, ela produz a imagem que encaminha uma perspectiva para nós espectadores, dessa vez não baseada em um registro factual dos acontecimentos como é o caso do áudio já mencionado, mas com base em um simples relato de Daniel. Porém, há algo estranho. A voz de Samuel (Samuel Theis) é substituída pela voz do garoto contando a história que comprovaria a tendência suicida de seu pai. Esse elemento de estranheza põe mais uma camada de dúvida sobre a narrativa. Anteriormente se afirmou a boa memória auditiva de Daniel. Contudo, em seu relato, a voz que escutamos não é a proveniente da memória com a voz de seu pai. As palavras que definem o caso saem de sua própria boca. O menino teria mentido para inocentar sua mãe? Afinal, nos tempos em que vivemos, em que imagens são cada vez mais instrumentos de construção e distorção de narrativas, elas seguem sendo incontestáveis provas da realidade?
“Anatomia de Uma Queda” é uma análise sobre o poder e as limitações da imagem como prova na contemporaneidade. Um filme complexo e instigante que não oferece soluções fáceis, mas consegue como poucos transformar em imagens as suas reflexões.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.
2 comentários em “Anatomia de Uma Queda”
Texto ótimo! Exprime muito bem a cinematografia do filme relacionado a sua narrativa.
Obrigado pelo comentário, João!