As cinebiografias sempre existiram – Joana D’Arc e Napoleão estão como evidência histórica. Elas continuarão a existir porque sempre haverá figuras cuja história, fama ou infamia e cujos feitos servirão de inspiração à arte. E a amplitude do gênero é ainda maior considerando que não é a figura propriamente dita, mas o recorte de sua obra ou vida, ou o ângulo pelo qual este é visto que determinam a narrativa.
O motivo do preâmbulo é que procurei lembrar quando começou o ranço com o gênero biográfico. Quentin Tarantino expressou com clareza a razão de desprezar o gênero: “São só grandes desculpas para os atores ganharem o Oscar. É um cinema corrompido”.
Ele não está errado.
As cinebiografias têm sido um atalho para que atores literalmente transformem-se em figuras históricas. Eles estudam, aprendem e mimetizam os maneirismos e as idiossincrasias. E, por este trabalho, são indicados ou até premiados com prêmios cuja relevância é um objeto de eterna discussão. Gary Oldman e Winston Churchill, Renée Zellweger e Judy Garland, Rami Malek e Freddie Mercury ou Jessica Chastain e Tammy Faye são alguns exemplos contemporâneos de atores e personagens, cuja maquiagem ou cujos penteados e figurinos não disfarçaram à dificuldade de penetrar na alma do indivíduo que retrataram e compreendê-la.
Talvez seja por isso que goste tanto da atuação de Frank Langella como Richard Nixon em Frost/Nixon. A ausência de semelhança de caracterização não é obstáculo para que o ator compreenda o narcisismo, a hipocrisia e, finalmente, a fragilidade retórica do político.
Um outro argumento contrário às cinebiografias é a abordagem covarde, e Bob Marley: One Love é um bom exemplo. Produzido por Ziggy Marley, filho de Bob, a cinebiografia é chapa branca para dizer o mínimo, didática e superficial. E ainda repete, inconscientemente, o mesmo equívoco pelo qual esse gênio da música seria criticado: uma certa isenção política.
A narrativa de Reinaldo Marcus Green (de King Richard) tenta expressar o do poder agregador da música, e da arte de modo em geral, de derruba os muros que separam a humanidade de uma convivência harmoniosa. Com esse propósito, o roteiro de Terence Winter e Frank E. Flowers, reescrito pelo diretor e por Zach Baylin, é certeiro ao decotar apenas um evento da vida de Marley: a organização de um concerto que reuniria os líderes políticos rivais e, quem sabe, atenuasse uma guerra civil que se estende por décadas, e que resultou no atentado ao músico que o levou ao exílio temporário na Europa.
O acerto existe no papel, pois no restante do tempo, One Love é disperso. Na esperança de aprofundar-se em Marley, o roteiro trata do relacionamento com Rita (Lashana Lynch) e do descaso com os filhos, do processo de criação do álbum Exodus, da descoberta do câncer, do contato com o movimento rastafari. Faz isso de forma superficial, dentro do que a duração permite.
As peças existem como um pedágio obrigatório na biografia, e não como um instrumento para compreender ou até para identificar as eventuais contradições do artista. Rita é um bom exemplo: embora Lashana abocanhe a personagem – até ofuscando Kingsley Ben-Adir -, a personagem é um mero adereço no fim das contas. O estereótipo materno para o parceiro, uma espécie de babá. É de Rita o momento guia para que Marley tome a decisão certa. É dela o momento de abrir-lhe os olhos, são dela os olhares de admiração, reprovação, sacrifício. Tudo em função dele. Não dela. No fim, Rita é só um instrumento, não um indivíduo.
Uma narrativa isenta e apolítica, que canta a utópica união dos povos, sem eleger culpados – mesmo que passeie ironicamente pela Inglaterra. Marley deixou a Jamaica, e isto não quer dizer que a narrativa também deve fazê-lo, não de modo acrítico. One Love é uma chance desperdiçada de indagar sobre a presença do músico carismático, em meio a disputas e de conflitos incessantes, um aspecto que o documentário Marley (2012), de Kevin Macdonald, não se furtou em investigar.
O que resta à narrativa é a busca incessante de oportunidades para um encaixe dramático de uma canção de Marley. Entendo a lógica de acenar aos fãs, desde que isto respeite a forma e o tempo cinematográficos – Rocketman (2019) é um exemplo excelente neste sentido. A artimanha de, casuisticamente, resolver um conflito dramático com a inserção de uma canção é narrativamente frágil e ainda sugere a instrumentalização ou utilitarização da obra musical, contrário à própria essência da arte.
Marley não cria música para resolver conflitos; ele cria música porque deseja expressar a sua personalidade conflituosa. Ele não murmurou Redemption Song – nos flashbacks que atrapalham ao brecarem a narrativa – para redimir-se ou para redimir o seu “eu criança”, mas porque sofre com isto. Aí é que entra aquele sentimento ambivalente. Eu amo a música do cantor, embora deteste as migalhas espalhadas pela direção, evidências da fragilidade da obra cinematográfica em andar com as próprias pernas.
Já Kingsley Ben-Adir não parece com o músico Bob Marley. O rosto do ator é menos áspero e expressivo, o sotaque é artificial a ponto de o esforço da atuação vir à tona, e seu olhar é benigno e pacifista, quando o de Marley parecia desafiar o interlocutor com este mesmo pacifismo. Entretanto, apesar da diferença, permanece a ânsia de reproduzir e espelhar, em vez de representar e aprofundar-se.
O Marley do filme é uma réplica, e como tal, pode-se enxergar a inautenticidade. Insisto nisso: não há compreensão, há reprodução. Marley tinha uma ferida no pé que evoluiu em câncer, depois em metástase. Por que Marley não amputou o dedo? Quem conhece a figura histórica sabe que é em razão da fé rastafari. Entretanto, o papel da arte não é o de mera reconstituição, mas interpretação. A narrativa e Ben-Adir mal exploram a contradição que havia em abdicar a vida em nome da fé. De forma análoga, muito menos investigam a decisão de retornar à Jamaica após o trauma vivenciado no passado.
One Love é medíocre. Este é um adjetivo doloroso, e é como vejo. Ainda prefiro uma obra que me estapeia a cara, do que uma obra que só reconstitui os melhores momentos da vida de quem quer que seja como se isso bastasse para a arte. Iniciei e terminei a biografia sem qualquer interpretação do homem – apesar de admirá-lo -, exceto a do indivíduo dividido entre duas etnias: a raiz africana dos povos escravizados levados pelos navios mercantes e a do homem que o negou e abandonou, uma metáfora à relação política entre a Jamaica e a Inglaterra.
O gênero biográfico não tem nada a ganhar, senão mais desprezo, com One Love.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.