As cenas iniciais de All We Imagine as Light, da diretora indiana Payal Kapadia, trazem um mosaico de personagens que relatam a sua experiência na metrópole de Mumbai, onde habitam mais de 21 milhões de pessoas no país. Então, a diretora aproxima-se da vida de três mulheres: Prabha (Kani Kusruti), Anu (Divya Prabha) e Parvaty (Chhaya Kadam).
Prabha é a enfermeira-chefe de um hospital, objeto da afeição de um médico, ao qual não pode corresponder porque está casada com um homem que a abandonou para morar na Alemanha. Ela divide o apartamento com Anu, também enfermeira, e que, apesar de a família estar tentando casá-la, mantém um relacionamento às escondidas com o muçulmano Shiaz (Hridhu Haroon). Já a enfermeira aposentada Parvaty está sendo alvo de desapropriação para a construção de um condomínio para ‘privilegiados’ – não sou eu que estou dizendo, é a propaganda da propriedade.
A vida dessas mulheres, que acreditam não poder fugir do destino, está entranhada em uma Mumbai melancólica, predominantemente noturna e, mesmo quando de dia, é imersa em tonalidades azuis dessaturadas e sombras espessas. A atmosfera hostil dessa metrópole, que não parece real e onde aquelas mulheres poderiam desaparecer sem ninguém perceber, exige a ‘fuga’ para um reencontro com sonhos e desejos em um local litorâneo e ensolarado.

Payal Kapadia realiza o que gosto de denominar de ‘filme de festival’, aquele tipo de obra que parece marcar todas as caixinhas temática, narrativa e estilística. Uma obra sobre sororidade na Índia em que casamentos arranjados ainda são comuns e em que uma enfermeira, fora do serviço, precisa pedir permissão para um médico (homem) para retornar à sua vida. Uma narrativa redondinha, na qual, embora as personagens não derrotem as adversidades, aprenderão a confiar umas nas outras para tanto. Finalmente, com um estilo de câmera na mão que acompanha a jornada delas muito proximamente.
Contudo, talvez seja o fato de altas horas ou de que já estou ansioso esperando o voo que vou pegar em algumas horas de volta ao Brasil, este é o tipo de obra que gostaria que me inspirasse a escrever mais, embora não consiga fazê-lo. É que, de fato, não há nada de errado com o filme – o ritmo vacila ao chegar à praia, mas nada que prejudique a experiência – e também nada que tenha me provocado inspiração para escrever muito mais. A ideia de um ‘filme de festival’ é justamente esta, a de uma experiência formalmente comum, ainda que parta de uma ‘dor’ ímpar da artista.
Payal me apresentou a Índia não dos épicos e fanfarras bollywoodianos, mas em um recorte específico, que o público, ainda mais internacional, desconhece, ainda mais com os meios de produção escassos disponíveis à cineasta. É o que individualiza All We Imagine as Light dentro do subgênero (?) ‘filmes de festival’.
Crítica publicada dentro da cobertura do 77º Festival de Cannes.

Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.