Mais divertida do que as melhores ideias de Le Deuxième Acte é a inserção breve, nos créditos iniciais, do logotipo da Netflix como empresa produtora. A explicação é um feudo que há entre o serviço de streaming e o Festival de Cannes, que começou em 2017. O diretor do festival, Thierry Frémaux, anunciou uma regra proibitiva da exibição de filmes que não tivessem estreia cinematográfica na França. Aí estão incluídos os filmes da Netflix.
Quentin Dupieux, de Rubber: O Pneu Assassino, escreve e dirige a comédia que tem início com a proposta indecorosa de David (Louis Garrel) ao amigo Willy (Raphaël Quenard). David oferece a namorada, Florence (Léa Seydoux), a Willy por não se sentir atraído por ela, e parece que alguma coisa errada não está certa. Willy desconfia, durante uma caminhada longuíssima retratada em um plano longo e sem cortes, quando o diretor revela o seu dispositivo narrativo. David e Willy, enquanto acumulam razões para serem cancelados, também admitem estar sendo filmados por uma câmera que não vemos.
Não é a quebra da quarta parede a que o espectador pode estar habituado. David e Willy estão dentro de um jogo de encenação, que Florence, Guillaume (Vincent Lindon), seu pai, e o barman Stéphane (Manuel Guillot) também reconhecem participar. Um jogo de que até tentam fugir, para falar a verdade. Le Deuxième Acte é uma comédia de uma piada somente, repetida de muitas formas. Guillaume, ou o seu intérprete, esquece o texto e demora até reencontrá-lo. Enquanto isto, Florence atende Willy no banheiro, que a assedia, com a justificativa de que os seus personagens têm um relacionamento na encenação de que participam. A piada vai e vem, e, em razão disto, apesar da duração de 85 minutos, a narrativa é enfadonha e interminável.
Quentin propõe, com a narrativa, uma reflexão tardia sobre realidade e ficção. “A realidade não é realidade“, explica David ou o ator que o interpreta. Eu concordo em termos cinematográficos, pois a imagem cinematográfica é só um recorte do real, um recorte espacial, temporal e contextual. Então, um filme sobre a encenação de um filme é tão real quanto a encenação propriamente dita. Mas Quentin não precisa de 85 minutos para transformar a ideia que teve cochilando em um filme que não a desenvolve, ou ao menos não além da premissa e não em uma comédia engraçada. Para ser honesto, só me recordo de sorrir com o humor físico de Stéphane tentando servir uma taça de vinho, pelo esforço e pelas falhas do personagem.
Talvez, e aqui é um grande talvez, Le Deuxième Acte provoque o espectador a refletir sobre a sua relação com a arte, a partir de um personagem que comete um ato violento. É uma cena interessante, não pelo ato propriamente dito, mas pela reação do público em face a este ato. E ainda pelos elementos adicionados pela direção que conferem tridimensionalidade, digamos assim, a este ato. A discussão pode até desaguar em comentários acerca de signos e significados, mas com uma mesma interpretação no fim das contas. Pois, se a realidade não é realidade, subir ou descer um nível na encenação não deveria provocar diferença, dentro da lógica narrativa.
Ao largo, bem ao lardo disso, Quentin Dupieux brinca com a utilização de inteligência artificial no papel de criadora da arte e utiliza, o que parece ser, um dos mais compridos dolly do cinema – a câmera montada sobre um plataforma deslocada sobre um trilho. Sobre o ponto final, tento tirar essa dúvida na coletiva de imprensa do filme.
Crítica publicada durante a cobertura do 77º Festival de Cannes.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.