Shula está dirigindo de volta para casa depois de sair de uma festa na casa de amigos. No caminho, uma imagem lhe chama a atenção: é o corpo do tio Fred deitado no asfalto. Sem saber exatamente o que fazer, Shula telefona ao pai, que despacha a preocupação da filha com bom humor, mas promete encontrá-la e ajudá-la. A noite passa e quem surge no local é a prima Nsansa, embriagada, batendo na janela do carro e tentando abrir a porta, de um jeito desagradavelmente cômico. Este prólogo já ajuda o espectador a compreender a ambição narrativa de Rungano Nyoni, no poderoso On Becoming a Guinea Fowl (ou Sobre se tornar uma galinha d’angola, em tradução livre).
A tragédia pela morte de um familiar é temperada com a alienação de Shula ao rito do velório e com o conformismo diante das cobranças das mulheres da família. Estas exigem uma atitude que Shula não está disposta a proporcionar, pois significa abrir mão de suas responsabilidades profissionais – ela é interrompida durante uma reunião virtual com o prefeito – em virtude de um familiar com quem parece ter tido um passado problemático.
Rungano discute as dinâmicas e hipocrisias da família de classe média da Zâmbia, dentro de uma estrutura de areia movediça. À medida que Shula (e o espectador) entra em contato com o passado do tio Fred a partir de indícios, relatos e memórias, é puxada para dentro de um silenciamento sufocante, do qual não pode fugir sem ser tragada para a escuridão de revisitar o passado que havia encoberto e esquecido. E talvez da escuridão, seja deflagrada a iluminação e o conhecimento para que gerações subsequentes possam amadurecer.
Todo esse processo é construído com um rigor formal admirável. Planos estáticos e cobertos de sombras exploram o imobilismo individual e familiar diante do trauma e dos ‘esqueletos’ mantidos intocados no armário. Já a alternância entre o olhar de dentro e o olhar de fora – insinuado já na cena inicial, quando Shula abaixa a janela do carro para que Nsansa entre -, entre manter-se apartada da família a despeito da alienação ou envolvida ainda que venha sofrimento, ignorar ou enfrentar o passado. É um trabalho admirável de Rungano Nyoni sete anos após sua estreia no premiado Eu Não Sou uma Bruxa – também selecionado para o Festival de Cannes.
A narrativa tem a chancela da A24, que, hoje em dia, parece-me uma informação relevante a ser incluída em um texto crítico, e uma abordagem de uma temática até recorrente dentro do cinema contemporâneo, mas realizada por um ângulo original e envolvente. Como disse, é igual à areia movediça, logo quando pisamos, não somos mais capazes de sair sem a ajuda de alguém do lado de fora, e isto fala muito – sem entrar em spoilers, espero – sobre o poder deste drama.
Crítica publicada durante a Cobertura do 77º Festival de Cannes.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.