A sensibilidade islandesa é peculiar o bastante para, às vezes, não ressoar com a latinidade melodramática. E muito do que amo no cinema está nessa oportunidade de entrar em contato com formas de experienciar a vida que não aquelas que a mim parecem naturais. Esta dramédia de Rúnar Rúnarsson (de Vulcão e Pardais), que deu início à mostra Um Certo Olhar, é um exemplo eficaz na ilustração do luto e dos conflitos que sucedem à morte trágica de Diddi, que havia prometido terminar com a namorada, Klara, para estar com a amante Una, cuja perspectiva orienta o olhar do espectador.
Una sofre o luto pela perda do amante introspectivamente, pois só Gunni conhece o relacionamento secreto que mantinha. Então, muito da emoção de When The Light Breaks está não no que é retratado frontalmente, mas no que é silenciado. E admiro como o tema abraça a estética fria, em que as cores tiraram férias, com exceção de intérpretes no pano de fundo com figurinos divertidos ou do amarelo, que é o motivo visual de Diddi, na porta de entrada da casa que divide com Gunni ou na associação meio careta com o sol antes do poente. (Particularmente, não vejo com bons olhos a passada de pano feita ao personagem adúltero, mas não curto julgar personagens).
Mesmo porque a narrativa não é sobre Diddi, mas Una, que tinha conhecimento do relacionamento extraconjugal em que estava envolvida, e cujo dilema está em sentir o luto sem poder senti-lo, de fato, do mesmo modo que os amigos sentem. Aliás, o roteiro de Rúnarsson é cruel o bastante para, a cada oportunidade, jogar na cara de Una como “Diddi e Klara eram lindos juntos” ou forçá-la a encarar o álbum de fotos que jamais pôde ter com o amado. A beleza narrativa está não no que revela e nem no que provoca, mas no que esconde.
Por esse motivo, é compreensível que Una seja enquadrada de perfil, por ter muito a esconder, ou de costas, para tornar inacessível ao público o que sente. O curioso é que, apesar dessa opção estética, a sensação que tive é de poder atravessá-la e capturar tudo o quanto tem a demonstrar pela atuação corporal. Ainda mais eficazes são os closes em Elín Hall, que parecem homenagear a atuação de Maria Falconetti em A Paixão de Joana D’Arc, expressiva pelo olhar e menear da cabeça, e não pelo que tem a falar.
Apesar de sua duração enxutíssima de 82 minutos, When The Light Breaks enfrenta o adultério e o luto com maturidade, quebrando a tensão narrativa com humor leve e oportuno, e sem perder de vista aquilo que não é comunicado por palavras, mas sim por gestos e olhares de feridas emocionais profundas.
Crítica publicada na cobertura do 77º Festival de Cannes
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.