Glau Soares vive a protagonista Joana em Lubrina, um curta que tem como pano de fundo a vivência quilombola. O curta foi exibido na Mostra Competitiva Nacional de Curtas (clique aqui para saber mais), no 1º Festival de Cinema de Xerém (clique aqui para saber mais).
Glau conversou com o Cinema com Crítica sobre o que é a “lubrina” que dá nome ao seu filme, num bate-papo com muitas trocas a respeito de “pretinhosidades” e como furar a bolha do audiovisual com uma narrativa afrocentrada. Glau é atriz, diretora e preparadora preta. Em seu currículo, possui as produções Sangue do meu Sangue (2024), Sal da Noite(2024), Maria (2023), Rumo(2022) e O Renascimento do Parto 3 (disponível na Netflix). Fora do audiovisual, Glau é também diretora da Associação lésbica feminista Coturno de Vênus e diretora do espetáculo teatral- Atumbiê(2023). Em 2017 foi premiada pela secretaria de apoio a Cultura (FAC) na categoria Audiovisual E em 2023 foi homenageada pela secretaria de cultura pelos seus feitos culturais na categoria Cultura mulher.
A.G.: Então, Glau, eu queria que você contasse um pouquinho da história do seu filme que tem muito a ver com ancestralidade, com retorno, territorialidade e, também, a questão do cenário dele, que é dentro de uma comunidade quilombola.
G.S.: Todo esse processo se inicia a partir de uma ausência de Joana, que é esse retorno para ancestralidade, para essa busca de arquivo, de memória. Como acessar sua árvore genealógica? Como entender essa perspectiva arte-vida quando você tem algo que você vasculha, que você procura, e que você não sabe nomear, não sabe dar nome, por que tiraram de você a sua história? Então, Joana inicia esse processo das vivências de poemas, a partir das percepções, de observação também. Aí a gente adentra ao Quilombo do Engenho Dois, em Cavalcante. E isso faz com que nós, também enquanto preparação, enquanto equipe, adentre nesse processo de ir buscando coisas que muito nos afetam enquanto artistas também. E essa busca, ela vai além da poesia, porque ela é uma busca política também. Então, assim, como que vai emaranhando, enviesando, como vai trazendo poesia, como que a gente vai pintando essa tela de preto, né? Aí é quando a gente traz Joana. É basicamente isso.
A.G.: Legal você falar essa questão de “pintar a tela de preto”, e o processo você vê que é uma jornada que ela perpassa, e que tem muito essa questão da neblina, essa névoa que faz parte dentro do filme. E você me contou que essa névoa é que dá nome ao filme. Eu gostaria que você falasse mais sobre isso, sobre essa névoa enquanto elemento narrativo.
G.S.: Exato! Isso foi um presente da própria população de Cavalcante, lá do Quilombo do Engenho Dois, porque eles têm uma questão que, como é um território que é rodeado por muitas montanhas, essa névoa sempre tem uma hora para ela protagonizar dentro desse território. E eles a chama de “lubrina”. Eles sempre falavam “hoje vai ter lubrina”, “tá lubrinado a cidade hoje”. Aí a gente nomeia o filme por conta dessa questão metafórica também por conta desse corpo que se mistura com esse terceiro elemento, que não conseguimos perceber, mas que está presente. É essa névoa. E Joana vai junto com a lubrina. E ela vem também junto da lubrina. É muito interessante que é esse corpo dentro de outros corpos. É esse corpo que a gente não consegue materializar, mas que sentimos muito presente.
A.G.: É interessante você falar isso porque, quando eu assisti ao seu filme, e ele tem uma pegada muito experimental, eu senti muita coisa nele. Eu não consegui racionalizar alguns sentimentos, mas pela questão da vivência. Eu enxergo que um filme possui três camadas: o texto, o subtexto, mas há uma terceira que é o expectador que transfere para dentro da tela, que é o contexto. Que são as vivências dele, para que ele se sinta atravessado em alguns momentos, para com que ele preencha as lacunas que o filme deixa ou até para que ele possa explodir o filma para além da tela. Então, eu não tenho essa vivência enquanto um homem branco. Eu não tenho essa busca por ancestralidade, no sentido de que eu conheço as minhas raízes porque elas não foram apagadas. E eu não tenho essa vivência de quilombo. Então algumas coisas que você coloca em tela, metáforas visuais inclusive, eu consigo entender que elas têm importância, eu consigo ser sensibilizado pela imagem, mas eu não sou atravessado por elas nesse sentido emocional, vamos colocar assim. Eu não consigo ser atingido da mesma maneira que uma pessoa preta, que possui essa vivência, que possui esse drama. Eu não consigo ser igualmente atravessado. Então, para mim, por exemplo, quando você coloca a névoa, na min há cabeça, aquilo faz sentido também como um não-lugar. Esse vazio existencial pela ausência de passado longínquo, essa busca do ser, acaba se mostrando o contrário. O que seria esse vazio, passa a preencher essa pessoa. Então tem uma poesia. Isso é uma leitura minha. Eu não sei se isso é uma leitura correta, se é um pensamento correto, mas é uma interpretação minha. Eu queria que você comentasse mais sobre isso.
G.S.: Alvaro, é muito legal você trazer isso. Essa visão de pessoa branca. E leia-se “pessoa branca” como “branquitude”. Quando eu falo de um lugar pessoal, eu também falo de um lugar social, sistêmico, onde a gente entende os não-lugares e os lugares e como ocupa-se. Então é legal quando você traz essa questão de “não me impactou emocionalmente” porque, de fato, existe esse abismo mesmo, social. A gente traz uma história que, para gente, é pungente, é forte, e que nos atravessa porque atravessa o nosso tempo social. E aí pessoas que não tem essa vivência, elas vão interpretar e vão preencher isso de acordo com o imaginário delas. Então, o que você tem de imaginário? E aí é uma provocação, né: O que que a branquitude traz de imaginário social, reflexivo, onde ela pretende chegar quando ela assiste e se coloca presente para assistir a um filme preto? O que nela reverbera disso tudo para ela conseguir ser atravessada? Por mais que ela não se sinta emocionalmente impactada, aquilo vai mexendo na estrutura dela, enquanto humanidade. “Por que que não me atravessou?”, essa é a primeira questão. O “por que que não me atravessa?” já é um atravessamento. O que está sendo trazido para você, mexeu aí em algum lugar. Porque enquanto pessoa branca pode não ser identificado de primeira, mas ele reverbera e causa inquietação. Aí entra numa questão linda, que é a questão antirracista, que a gente fala que é algo que é de todes: é de pessoa branca, de pessoa preta, de pessoa amarela. Então essa inquietação, ela é para falar “e aí, aliado. Para onde que a gente vai brincar agora?” É aí que traz vocês para perto. E é muito bom poder sentir essa sua fala como algo que é um portal de possibilidades. Onde a gente pode dialogar e conversar, e que vai pegar na mão e falar “vamos juntos!” de verdade. É para além do discurso!
A.G.: Sim! Eu gosto dessa discussão que isso promove. E também acho legal um termo que você usou – e que eu achei lindo: a “pretinhosidade” que é levada para dentro de tela. Eu acho maravilhoso!
G.S.: A “pretinhosidade”, dentro do movimento negro e de mulheres negras, esse termo é cunhado, obviamente, por uma mulher negra, e que a gente habitualmente usa. É quando a gente quer trazer dentro de um conceito essa explosão de poesia: É esse elenco todo preto, é essa diáspora fazendo história por ser contada de uma vertente que não seja de tristeza, dor ou sofrimento, mas de insurgência na poesia, de contar a beleza que é ter uma família, de que é ter a avó, de tomar banho no rio, de comer aquela comida afro-diaspórica dentro desse Kalunga, desse quilombo. É aquilombar de verdade! Então “pretinhosidade” abarca diversos conceitos de beleza e de poesia preta.
A.G.: Isso aí consegue ser sentido! É o carinho que existe dentro da película, das relações dentro do filme. Não só entre as pessoas, mas com a terra, com o espaço. Isso sim atravessa. A questão racial, social, não nos impede de sentir. Afinal, o amor é universal, né. E eu queria te perguntar também sofre como furar essa bolha. Que, por exemplo, você fala de um filme que, mal ou bem, conversa com os seus, com um grupo específico, mas como que é, através do Festival de Xerém, e de outros festivais, sentir estar atravessando essa bolha do filme? Como é atravessar essa barreira e trazer esse olhar, que é importante, para outros grupos, outras vivências para poder fazer essa comunhão através do audiovisual.
G.S.: Olha, eu gosto muito de brincar assim: primeiro, olha para quem está falando. Olha bem para mim. Eu sou uma mulher preta. Eu sou uma mulher lésbica assumidamente. Eu sou mãe. Sou sapatona. E eu sou eu. Eu sou Glau. Para além de um CPF. Para além de uma pessoa física, né. Eu sou um ser. Então, assim, furar a bolha é quando eu penso que pessoas como eu possam se sentar na mesa e celebrar de igual para igual. Que a gente possa sorrir junto. Que a gente possa falar de filme junto. Que a gente possa ser ouvida. E que a gente possa mostrar uma narrativa outra, que vai causar estranhamento, mas que tenha abertura para ser contada. Então, assim, “furar a bolha” perpassa por todas essas vielas, por todos esses caminhos. É “quem está falando?”. É “olha para essa pessoa primeiro” e “o que você imagina que eu gostaria de dizer?”. Depois “vamos trocar uma ideia?”. E esse lugar de “trocar idéia” é o lugar da mágica. É o “existe aqui” e o “existe nós aqui celebrando”. Então, que tal celebrarmos juntos? Isso que é, para mim, o furar a bolha.
Lubrina recebeu os troféus Zeca Pagodinho de Melhor Direção e Melhor Montagem.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.