Eu demorei mais do que meus colegas para assistir a Deadpool & Wolverine e, mesmo que não tenha tido a oportunidade de ler os argumentos favoráveis ou não, senão os tuítes, pude acompanhar ofensas e comportamentos reprováveis de fãs inconformados com o fato de, ora ora, o seu gosto pessoal não ser o mesmo do que a crítica brasileira. A chuva de comentários tratando de um (não tão hipotético) filme iraniano em preto e branco ou reclamando que a crítica não teria entendido a proposta, para citar somente dois, desvalorizam não a profissão da crítica de arte, calejada por tantos séculos, mas a terceira parte das aventuras de Wade Wilson, o mercenário tagarelo. Ao conferir a este subgênero de super-heróis o mesmo olhar concedido a filmes autorais e clássicos, por exemplo, a crítica não desmerece o subgênero, mas o homenageia.
A realidade é que a primeira aventura do personagem na Disney, depois da aquisição da Fox, é frustrante. É um conjunto de sementes de boas ideias plantadas em um solo mais árido e pedregoso do que o Vazio, onde acontece parte da ação. O que é irônico, pois, diferente das produções que forçaram o conceito de multiverso goela abaixo do público, o filme herdou do antecessor a chave para que o roteiro escrito a oito mãos estivesse dentro do idealizado por Kevin Feige. A viagem no tempo de Deadpool 2, na qual o personagem ‘consertou’ o passado – até o desastre de X-Men Origins: Wolverine – coloca-o na posição vantajosa para ser adaptado no contexto da série Loki e da ‘Saga do Multiverso’, enquanto procura tornar-se um Vingador para reconquistar o amor de Vanessa (Morena Baccarin).
Eventualmente, Wade chega no escritório da TVA (Autoridade de Variância Temporal) e conhece o misterioso Sr. Paradox (Matthew Macfadyen), que o informa que sua linha do tempo (da Fox) será ‘podada’ depois de ter perdido a sua Âncora, Logan. Para evitar a morte de seus amigos, Wade viaja entre as linhas temporais até encontrar um Logan que acredita poder ajudá-lo – um que vista o colante amarelo tradicional das HQs -, só que não é o suficiente, e ambos são enviados ao Vazio, governado por Cassandra Nova (Emma Corrin), a irmã gêmea do Professor Charles Xavier. Aí, Wade e Logan brigam e trocam farpas e xingamentos, encontram rostos conhecidos (do espectador) e enfim se tornam a dupla que esperávamos que se tornariam.
A química entre Ryan Reynolds e Hugh Jackman funciona por causa da amizade entre os atores e a despeito do roteiro bater nas mesmas teclas já vistas, por exemplo com o Thor e Hulk. E é até bonito assistir a este Logan, que não é o mesmo que conhecemos anteriormente, enfrentar o trauma do passado, embora Wade pareça um peso morto e um mágico de um truque só. Um personagem condenado pela falta de criatividade de quem apela à metalinguagem e à quebra da quarta parede, sem uma maneira inventiva de empregar tais recursos. Estes elementos até entretêm, e a sequência inicial honra a tradição do antecessor com violência gráfica estilizada, humor irreverente e sexual, ao som e coreografia (!) de ‘N Sync. Só que, empregados por um diretor burocrático como é Shawn Levy, parecem reafirmar que é isto tudo o que Wade tem a oferecer.
Além do mais, Ryan Reynolds mais erra no humor do que acerta, fazendo com que eu desejasse o mesmo que Logan: que Wade apenas calasse a boca. A culpa não é do ator exclusivamente. O roteiro de Deadpool & Wolverine tem boas ideias só para desperdiçá-las. O Sr. Paradox é um burocrata não diferente do que foram os executivos da Disney que realizaram a aquisição da 20th Century Fox, convidando Wade a integrar a ‘Linha do Tempo Sagrada’ (a Disney, penso) deixando mediocridade (a Fox). Até a escalação de Macfayden é um acerto neste sentido, pois o ator está associado ao jogo de poder e às traições de Succession. Entretanto, a narrativa não sabe desenvolver esta autocrítica (?) e mesmo Wade, familiarizado com a fusão, é um contra-argumento, pois troça aquele estúdio no qual nasceu.
Igual a uma pessoa que não sabe agir naturalmente quando encontra o ex numa festa, Deadpool & Wolverine só provoca risos amarelos quando trata da aquisição da Fox pela Disney. Uma evidência é não saber aproveitar a melhor ideia do roteiro: retirar de um limbo (o Vazio) uma parte do que a Fox pôde contribuir com os filmes de super-heróis e oferecer a oportunidade de terceiro ato para aqueles que não o tiverem. A intenção é admirável e, inclusive, materializa superficialmente o que jamais aconteceu, porém a execução reduz justamente a importância destes personagens esquecidos e rejeitados à sua presença (em alguns casos), a frases de efeito, a entradas imponentes etc. Neste sentido, o irregular The Flash fez antes e melhor ao resgatar, por exemplo, o Batman de Michael Keaton, dando-lhe um propósito maior do que uma figuração de luxo.
Visualmente, Deadpool & Wolverine é também desinteressante e comprovação absoluta da genialidade de George Miller na concepção de Mad Max: Estrada da Fúria. O diretor Shawn Levy parodia aquele cenário pós apocalíptico recorrendo à fotografia genérica e ao design de produção que tenta desviar a atenção do espectador da falta de esmero da imagem, povoando-a com símbolos que os fãs reconhecerão facilmente (e que serão objeto de vídeos explicando do YouTube com os easter eggs – como se a menção apenas bastasse).
A propósito, pensando como fã, eu também reclamei do uniforme preto dos X-Men no filme de 2000 ou do Duende Verde do Homem-Aranha de 2002, mas mesmo com 16, 18 anos, poderia perceber a diferença entre bom e mau fan service (antes mesmo do termo ser usado em massa). Gosto deste Wolverine de colante amarelo e da máscara das HQs e compreendo a alegria de quem se entusiasmou ao assistir a seu herói favorito dessa maneira. Contudo, é lamentável que Shawn Levy sacrifique oportunidades dramáticas apenas para que o personagem apareça de máscara. Há uma oportunidade para isto – e o filme aproveita, e você sabe de que cena estou falando -, mas estender a máscara por todo o clímax apenas desperdiça a atuação habitualmente visceral que Hugh Jackman proporciona a um personagem que conhece tão bem.
Eu nem preciso comentar sobre Cassandra Nova pois, a esta altura, os bons vilões da Marvel Studios são exceção, não regra, ou das aparições surpresa (que já são reveladas pela própria Marvel no dia seguinte ao lançamento), e resta-me elogiar timidamente o roteiro por proporcionar uma história bem resolvida, ignorante para desdobramentos futuros.
Mas sabe o que me deixou mesmo intrigado?
Como a tentativa de Deadpool & Wolverine em honrar as raízes e o legado da Fox não é um terço emocionante do que é o vídeo-montagem apresentado nos créditos finais.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.